Na memória, guardo um lugar só para filmes. Por estarem tão perto, sou constantemente acometido de reflexos mais ou menos vagos: cenários, diálogos, paisagens e até silêncios de cada uma dessas histórias, como se eu fizesse parte delas, ou elas de mim. Não relevo épocas nem temas. As datas, esqueço. E o debate sobre correntes amofina-me. Tão-pouco me importam os acasos e desventuras do final. Nunca duvidei de Kipling: o triunfo e a desgraça não passam de meros impostores. Exímios, talvez. Desleais, certamente. Como confiar em algo ou alguém que tenta, à sombra de um desenlace, turvar ou delir o que julgamos certo ou errado? Epílogos não dissolvem crenças nem convicções. Derrotas não diluem a fé nem a esperança. Paul Newman e Steve McQueen nunca precisaram de ganhar para serem heróis.

Rememoro ainda inúmeras bandas sonoras, êmbolos propulsores de emoções e sentimentos. Audrey Hepburn sabia-o como ninguém: «Um filme sem música é como um avião sem combustível.» Depois de gravar Breakfast at Tiffany’s, inspirado no romance homónimo de Truman Capote, a diva escreveu estas palavras a Henry Mancini, autor de melodias tão incandescentes como as esmeraldas e safiras de que a sedutora Holly Golightly se enamorava no expositor da elegante loja nova-iorquina logo ao amanhecer. Na carta, uma vénia sentida, demorada. Na comparação, o pressentimento de ser Moon River o verdadeiro diamante do filme, a jóia eviterna que nem o tempo se atreveria a deslustrar.

À última hora, reza a lenda, um director da Paramount, assaz preocupado com a duração da fita, ou talvez rendido à plasticidade da edição, quase excluiu o tema. Audrey Hepburn, divina guardiã da beleza, interveio e impediu o desaforo. A obra-mestra ficou, e a profecia cumpriu-se. Para a eternidade, a imagem indelével da actriz, sentada no peitoril da janela, sem tiara nem lentejoulas, sem pulseiras nem boquilha, a guitarra serenamente pousada no regaço.

Na voz frágil, uma promessa jurada e o desejo inocente de seguir um rio criador de sonhos, dois nómadas destinados a encontrar-se onde termina o arco-celeste: «Moon River, / Wider than a mile, / I’m crossin’ you in style / Someday. / Old dream maker, / You heart breaker, / Wherever you’re goin’, / I’m goin’ your way.»

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A missão de encontrar palavras na melodia foi confiada, pelo renomado compositor, a Johnny Mercer, que escrevera, entre outras, as letras dos clássicos I’m Old-Fashioned e Autumn Leaves (versão inglesa). Nos versos de Moon River, vislumbres do bucolismo entranhado em Down by the Salley Gardens, de W. B. Yeats, e ainda da infância, tão poética como aventurosa, de Tom Sawyer e Huckleberry Finn, unidos ao Mississípi como Flaubert e Zola ao Sena.

No impassível fluir da corrente, renovam-se a vida e o Universo. Na China antiga, a travessia do rio, que os jovens casais faziam no equinócio da Primavera, simbolizava a mudança das estações, a passagem do yin ao yang, a ablução prévia à fecundidade. Por seu turno, os Helenos acreditavam terem os rios um poder cósmico e divino, pelo que lhes ofereciam sacrifícios. Ao longo da História, pintores, músicos e poetas viram neles a metáfora perfeita dos dias e do tempo. Na verdade, todos temos um rio. E nas suas águas, como vaticinou Platão no diálogo Crátilo, só imergimos uma vez.

O devir, feiticeiro altivo e indomável, inventor ubíquo de estradas para o futuro, imortalizaria a balada. Frank Sinatra converteu-a em declaração sentimental. Art Blakey e os Jazz Messengers deram-lhe loucura e bebop. As guitarras loquazes de Eric Clapton e Jeff Beck instilaram modernidade em cada compasso. E o inigualável Jacob Collier, ungido por Orfeu e sagrado por Herbie Hancock e Quincy Jones, arrastou-a do presente ao infinito num lucilante caleidoscópio de notas e sons.

Cenários e efeitos especiais podem conquistar Hollywood e arrebatar a estatueta dourada, perante louvores estrepitosos. Dificilmente, porém, desinquietam ou comovem. Talvez por isso George Lucas, ciente de ter John Williams contribuído para a diáspora d’A Guerra das Estrelas, afirme ser a banda sonora metade do filme. A ideia não perturba Steven Spielberg, que escolheu caminhar ao lado do maestro desde muito tempo. E quando este, num assomo de genuína desvaidade, deixou escapar que A Lista de Schindler merecia um compositor melhor, o cineasta redarguiu com o ímpeto de um saxofonista no calor do improviso: «Eu sei, mas estão todos mortos.» Não estava enganado. Ao ouvir, pela primeira vez, o tema principal, que o violinista Itzhak Perlman havia de perpetuar, simplesmente chorou. Também pela música se recordaria o Holocausto.

Na literatura, a imaginação une-se aos sentidos, e o leitor, eremita em promontório, decide o que ver e sentir na vastidão de cada página, como se Tolstoi não fosse o único criador de Andrei e Natacha, como se Heathcliff e Catherine Earnshaw não brotassem unicamente da pena de Emily Brontë, como se Jean Valjean e Javert pudessem ser escritos até à eternidade. No cinema, porém, os planos acolhem uma miríade de sinais que guiam o espectador nos trilhos infinitos do enredo, toldando-lhe o desejo, o alvedrio. O realizador impõe a sua utopia, e as imagens mapeiam o inconsciente. A música é, por isso, a partícula do mistério: inunda de pathos a grande tela, pressagia a ventura e a tormenta, e liberta-nos da superfície chã em que se movem as certezas e a realidade.

Nem sempre foi assim. Em 1888, quando descreveu conceptualmente o cinetoscópio, destinado à observação individual de representações em movimento, como revelam os étimos gregos kynetós (móvel) e skopeīn (observar), Thomas Edison decerto não pressagiou 2001: Odisseia no Espaço, película hipnótica de Kubrick, que irrompe com Assim Falava Zaratustra, Op. 30, poema sinfónico de Richard Strauss, inspirado na obra de Nietzsche. E na estreia de La Sortie de l’usine Lumière à Lyon, em 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière dificilmente terão imaginado que Judy Garland nasceria para imortalizar Over the Rainbow, tema quase suprimido d’O Feiticeiro de Oz, premonição do que ocorreria com Audrey Hepburn e Moon River.

Como água de clepsidra em estilhaços, o progresso não se demora no campo de visão de uma lente. Em 1927, Alan Crosland legou ao mundo The Jazz Singer, o primeiro filme falado, assente no inovador Vitaphone, que sincronizava som e imagem. Nesse mesmo ano, William Fox anteviu o fim da insonoridade. E dez anos mais tarde, Alfred Newman, autor de bandas sonoras imortais e da fanfarra que anuncia as produções da 20th Century Studios, já afirmava nada substituir a música na Sétima Arte.

As melodias infiltram-se no argumento como orvalho em terra sáfara, como alvorada em montanha desluzida. O universo sónico vivifica a narrativa e nela insufla quietude ou vertigem, beleza ou fealdade, bondade ou vilania.

Foi assim com Nino Rota, cuja música grandiosamente nostálgica epitomiza, em O Leopardo, de Luchino Visconti, decalque do romance homónimo de Lampedusa, o declínio e o estertor da aristocracia sícula na segunda metade do século XIX. O feito repetiu-se, por exemplo, em Amarcord, longa-metragem em que Fellini destila a sua própria infância na Itália belicosa e imperial de Il Duce, enquanto desfia as contradanças de habitantes excêntricos da adriática Rimini: um acordeonista cego com ademanes dignos do Teatro alla Scala, um padre devasso, uma cabeleireira que alardeia sedução e sonha com Gary Cooper. A História também não esquecerá as melodias pastorais e sibilinas que o milanês compôs para a família Corleone: o trompete solitário, as valsas sicilianas, o lacrimoso bandolim.

Já Yann Tiersen transformou em banda sonora uma cidade inteira. Em O Fabuloso Destino de Amélie, entre confidências e murmúrios de pianos, o músico evoca a romanesca Paris: os cafés apaixonados onde se brinda ao amor e à poesia, as tardes sem arrebol diluídas em serões nunca confessados, os segredos imersos no canal Saint-Martin, as ruas boémias de Montmartre outrora tomadas por Degas, Picasso e Renoir.

E Ennio Morricone musicou a América para Brian de Palma e Sergio Leone: a Chicago sanguinária de Al Capone, o bairro nova-iorquino de Lower East Side, e as terras cálidas e inóspitas do Oeste, onde sicários apostavam a vida em duelos fatais, ante silvos proféticos, tambores a galope e hinos que ressoavam no deserto como requiem em velha catedral. Com notas emanadas do peito, o maestro permitiu ainda a Giuseppe Tornatore espiar telescopicamente as paixões quiméricas da adolescência, metaforizadas em olhares delongados sobre a inevitável Malèna, e revolver o passado numa tela que censurava o beijo, mas não a ternura nem o coração.

Os sonhos evolam-se no álgido realismo que sobrevém ao final, astros vencidos em noite de eclipse. Retornam, porém, quando a música desponta e reverbera. James Bond renasce para salvar o mundo, cada vez que Shirley Bassey canta Goldfinger e Diamonds Are Forever. Ao som de As Time Goes By, Ilsa e Rick voltam a ter Paris. E nas vozes de Clint Eastwood e Jamie Cullum, o Gran Torino ainda desliza em estradas sem regresso nem ocaso.

O que sentimos no cinema nunca desvanece. Ao cair do pano, há sempre uma canção à nossa espera.