Portugal é, desde há largos anos, o campeão das idas à urgência. É, efetivamente, o País da OCDE com maior número de episódios de urgência, que ronda os 70 episódios por 100 habitantes anualmente. Estamos a falar de 7 milhões de episódios de urgência por ano.
Ainda que tenha sido durante a pandemia COVID-19 que os portugueses se habituaram a ouvir nos órgãos de comunicação social a expressão “pressão sobre os serviços de urgência”, a realidade é que esta pressão existe todos os anos, com maior ou menor magnitude, mas sempre com maior expressão em período de atividade gripal, tradicionalmente entre dezembro e março.
A sobrelotação dos serviços de urgência em Portugal é um problema complexo, que exige intervenções coordenadas e estratégicas em várias frentes, com efeitos que não são imediatos e que talvez por isso tenham vindo a ser constantemente adiadas pelos sucessivos governos. Ainda que tanto para leigos como para políticos possa assim não parecer, o caos dos serviços de urgência não tende a resolver-se nem com mais hospitais nem com mais serviços de urgência mas sim com investimento e soluções que se encontram a montante e a jusante destes serviços.
De entre os 7 milhões de episódios de urgência anuais, cerca de 3 milhões são considerados pouco urgentes ou mesmo não urgentes. Nestes, é crucial o investimento em alternativas que permitam ao cidadão, perante doença aguda, ter acesso a cuidados de saúde ajustados às suas necessidades e expetativas, o que equivale a dizer que é fundamental nos cuidados de saúde primários.
A aposta na prevenção da doença é francamente mais inteligente e menos onerosa do que a aposta no tratamento. Assim, o alargamento dos horários de atendimento nos centros de saúde, tornando-os mais adaptáveis e com facilidade de acesso face às exigências da vida moderna, com aumento de consultas médicas e de enfermagem e aumento da vigilância de doentes crónicos, terá um importante impacto na redução de idas ao serviço de urgência por parte destes doentes. Paralelamente, deveria ser aumentado o número de serviços de urgência básicos nos centros de saúde, serviços que se pretendem de proximidade e que permitam o atendimento de doentes tradicionalmente triados de azul e verde nos serviços de urgência e que poderiam ter as suas necessidades satisfeitas a este nível, libertando o serviço de urgência para aquela que é a sua missão primordial, que é o atendimento do doente urgente e emergente. O aumento de visitação domiciliária e o recurso à telemedicina podem ter aqui um papel preponderante nos próximos anos, promovendo de forma sustentável a “ida do médico a casa” das pessoas, com óbvios ganhos em saúde. Para isso é absolutamente necessária uma revolução tecnológica do SNS, aproximando-o das realidades e tecnologias do século XXI.
Nos últimos 20 anos, a percentagem de população portuguesa acima dos 65 anos aumentou de 16 para 24%. Com o envelhecimento da população vem de mãos dadas o aumento das doenças crónicas. Estamos a falar de doenças crónicas do foro respiratório, cardíaco ou endócrino, como a diabetes que, se não vigiadas e acompanhadas, redundam em visitas ao serviço de urgência que, com maior investimento nos cuidados de saúde primários, seriam evitáveis. E este é um papel dos centros de saúde, para onde o Estado tem definitivamente de olhar e apostar.
Custa a entender como é que num dos países da OCDE com maior número de médicos por habitante, mais de 1 milhão e meio de portugueses não têm médico de família. E custa mais ainda a entender como Portugal é dos países da OCDE com menor número de enfermeiros por habitante e continua a deixar fugir anualmente centenas de enfermeiros formados no país que vão procurar melhores condições de trabalho para outros países europeus. Estima-se que cerca de 18 mil enfermeiros portugueses exerçam atualmente a sua profissão fora do país, pelo que é crucial a melhoria de condições laborais para estes profissionais que, por si só, bastaria para garantir um significativo alargamento da capacidade de resposta não só dos cuidados de saúde primários, mas também de serviços hospitalares que sobrevivem muitas vezes à custa de horas extraordinárias que desgastam a médio e longo prazo os seus profissionais.
Ainda a montante, e a partir do momento em que existam alternativas para o cidadão para aquela que é, até hoje, a única porta de entrada no SNS para situações de doença aguda, o acesso a serviços de urgência deve ser efetuado através de referenciação, nomeadamente através da linha SNS24, da rede de emergência ou através do médico de família. Com a criação de alternativas para o cidadão no acesso a cuidados de saúde em situação de doença aguda pouco urgente ou não urgente, seria possível tornar o acesso gratuito a serviços de urgência apenas a situações referenciadas, fosse pela rede de emergência, pela linha SNS24 ou pelos próprios centros de saúde, taxando de forma significa quem a estes fizesse bypass.
A jusante, o investimento nos lares e na rede de cuidados continuados deve constituir uma das prioridades, se não a principal prioridade para a próxima década. Num País com uma população cada vez mais envelhecida, a forma como os idosos são tratados influenciará e muito a gestão de toda a rede de urgência e emergência. Mas mais importante que isso. Uma sociedade define-se pela forma como trata os seus “velhos”. Daí que seja de primordial importância o investimento em recursos que permitam que idosos e doentes crónicos tenham, institucionalizados ou não, acesso aos cuidados de saúde ajustados às suas necessidades e que reduzam muitos dos episódios de urgência que desta forma poderiam ser evitados ou encurtados na sua duração.
No entanto, quem conhece bem a realidade dos serviços de urgência sabe a dificuldade que existe em drenar ou transferir os doentes destes serviços para serviços de internamento, acumulando doentes internados em corredores durante horas ou dias à espera de vagas em serviços. Ainda que os casos sociais que se acumulam nos serviços a ocupar camas de internamento possam explicar parte do problema, não pode ser escondido que Portugal é dos Países da União Europeia com menos camas hospitalares por habitante. Portugal conta com cerca de 350 camas hospitalares por 100 mil habitantes, o que representa um número significativamente inferior à média europeia que se cifra nas 500 camas por 100 mil habitantes, o que causa uma natural pressão não só nos serviços de urgência mas também nos próprios serviços de internamento, forçando a altas mais precoces que a rede de apoio domiciliário não tem capacidade para acompanhar.
Entretanto, todos os dias, centenas de doentes com indicação para internamento aguardam horas ou mesmo vários dias nos serviços de urgência, em alguns casos em contentores, a aguardar vaga nos serviços de internamento. Horas ou dias em que em vez de dormirem na cama de um quarto, desesperam numa maca de um corredor. Esta não é uma consequência de uma determinada política ou governo. É o resultado de décadas de desresponsabilização do Estado face a esta problemática, com adoção de medidas pontuais, absolutamente infrutíferas e sem qualquer tipo de impacto na resolução do problema de fundo.
Naturalmente que também dentro dos serviços de urgência são necessários ajustes. A aposta na modernização e diferenciação dos serviços é, neste campo, absolutamente primordial. Em 2024, foi aprovada a recém-criada especialidade de Medicina de Urgência para a classe médica, em alinhamento com grande parte dos países europeus. No entanto, os seus potenciais benefícios não serão sentidos no espaço de uma década. Importa pois, em paralelo, apostar na especialidade de doente crítico dos enfermeiros, já existente há mais de 10 anos e contando já com mais de 700 enfermeiros especialistas a nível nacional e, dentro dela, criar competências avançadas que promovam o task-shifting, estratégia já utilizada noutras áreas e que permitiria ajustar a resposta dos serviços de urgência aos seus utentes, com manutenção da qualidade assistencial e uma maior otimização de recursos.
Mas sem ovos não se fazem omeletes e Portugal, ao longos dos últimos anos, tem investido na Saúde menos de um terço do orçamento que a média europeia. Sem dinheiro não há melhores serviços, melhores equipamentos e, sobretudo, nem mais nem melhores profissionais. Por isso o Estado deve de uma vez por todas assumir a Saúde como uma prioridade. Mais do que discursos inflamados e de circunstância, o que o SNS precisa, e dentro dele a rede de serviços de urgência, é de investimento.
Por último, permitam-me uma nota sobre a área de investimento mais necessária mas com retorno a mais longo prazo: a literacia em saúde. Precisamos que nas escolas primárias e secundárias os nossos filhos aprendam a reanimar, sim. Mas precisamos também que em todo o ensino secundário os nossos jovens aprendam a utilizar os recursos disponíveis, nomeadamente os de saúde. Numa altura em que tanto se fala em literacia financeira e na possibilidade da sua inclusão no ensino secundário, um País que não sabe valorizar a sua Saúde não sabe valorizar-se a si próprio.