A humanidade conheceu diversas épocas que mudaram o curso da história. A era digital não é diferente. Esta nova etapa, acelerada com a pandemia, é um desafio constante, cheio de dúvidas e de mudanças permanentes.

A internet domina a vida de muitos milhões. É um instrumento na relação que temos uns com os outros, para estabelecer relações de negócios, de consumo, como meio de informação e de divulgação cultural cada vez mais presente. Sendo a língua portuguesa uma das mais utilizadas online é igualmente um espaço de afirmação dos países de língua oficial portuguesa e dos seus cidadãos. É inegavelmente um lugar privilegiado de expansão da língua portuguesa, da cultura e da identidade destes países.

Em resposta a este novo mundo, foi recentemente publicada a Carta Portuguesa dos Direitos Fundamentais na Era Digital (Carta). A Carta não apenas reforça alguns direitos, como também estabelece novos. Porém, deve ser interpretada e aplicada de acordo com os diversos instrumentos jurídicos internacionais e europeus.

Assim sendo, a Carta estabelece o direito de acesso universal à internet, que deve ser promovido de forma igual e livre, se bem que tal igualdade é dificilmente alcançável, o que é possível é estabelecer medidas de maior acessibilidade. É ainda evidente que tal apenas é possível com a concretização eficaz do direito ao desenvolvimento de competência digitais, igualmente previsto na Carta, sem as quais não pode haver uma utilização adequada dos meios digitais, sobretudo das potencialidades que as novas tecnologias permitem.

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É inegável que as diferenças de utilização e de competências digitais e de desenvolvimento, provocam profundas assimetrias – quer nacionais, quer globais – e que devem ser diminuídas. A Carta inclui a referência à acessibilidade de pessoas com capacidade diminuída, ou seja, abrange pessoas com deficiência, o que é também significativo.

Por outro lado, a internet começa por ser um espaço de informação. Por isso, e não apenas por isso, o exercício pleno da liberdade de expressão é essencial. Assim como outros direitos relacionados, nomeadamente o direito de informação, a liberdade de consciência e de opinião, bem como a liberdade de imprensa e a liberdade da imprensa. A evolução da internet não existe sem todos estes que acabamos de referir. A essência da internet está nos seus conteúdos.

Deste modo, ao mesmo tempo que a Carta protege o direito de liberdade de expressão prevê o direito de proteção contra a desinformação. Este “novo” direito tem em si mesmo muitos riscos. Nessa medida, apenas deve ser aplicável de forma bastante restritiva, se não é contrário a diversos tratados internacionais, ao Direito europeu e à Constituição.

Por isso mesmo, qualquer limite ao direito de liberdade de expressão deve ter por critério o interesse público, ser motivado por fortes motivos de segurança pública e avaliado segundo o caso concreto e decidido pelos tribunais.

A Covid-19 veio destacar o papel que a internet tem na sociedade e, simultaneamente, a necessidade de utilizar a mesma em segurança, protegendo e respeitando os dados pessoais para gerar confiança.

A Carta fala do direito à privacidade digital, que surge intimamente ligada à cibersegurança. O conceito de privacidade tem evoluído muito e, nos dias de hoje, já não se cinge ao “direito de não ser incomodado”. No ambiente digital, privacidade digital significa sobretudo decidir quem tem acesso aos nossos dados pessoais, quais destes queremos partilhar e para que fins. Competindo, para isso, ao Estado, entidades reguladoras e empresas, que as políticas e ferramentas disponíveis realmente assegurem a proteção de dados.

Quando abordamos este tema, não falamos só de medidas para proteger o computador de um acesso não autorizado por parte de um hacker. Falamos da implementação de um sistema organizacional que protege os dados em movimento e/ou armazenados. Daí, a Carta falar do direito a comunicar com recurso a diversas formas de proteção da identidade, como, por exemplo, a criptografia.

O ónus da proteção dos dados pessoais que tendemos a colocar no Estado, nos reguladores e nas empresas, deve ser repartido com o cidadão comum, pois é este o primeiro e principal interessado. No entanto, coloca-se a questão até que ponto somos utilizadores esclarecidos desta potente ferramenta do séc. XXI. Infelizmente, Portugal e os países lusófonos encontram-se em posições desfavorecidas no ranking mundial da Literacia Digital. Veja-se, por exemplo, o “The Inclusive internet Index 2020”, elaborado pela revista britânica The Economist. Por isso, o desenvolvimento das competências digitais é fundamental na sociedade atual, porque a proteção da nossa privacidade também “é da nossa conta”, deve ser uma preocupação constante de um cidadão informado neste mundo global. Convém não esquecer que os dados pessoais são a moeda da internet.

Dito isto, passamos para um tema muito polémico na sociedade atual: a inteligência artificial. Na atualidade, encontra-se associada a todos os movimentos e usos que damos aos dispositivos com acesso à internet, tais como: uso do Google Maps, compra no supermercado online, tempo que passamos a ler um artigo, relógio que usamos para fazer desporto, página de Facebook. Como é fácil perceber, a inteligência artificial “alimenta-se” do nosso comportamento para influenciar campanhas de marketing que nos são apresentadas, caminhos para casa, sugestões para jantar.

O caso muda de figura quando se trata de recusa de seguros de saúde devido a hábitos alimentares saudáveis, recusa de crédito ou de emprego com base nas informações recolhidas na internet. A Carta, tal como outros instrumentos jurídicos europeus e internacionais, vem proteger o cidadão, dando-lhe o direito a recorrer destas decisões.

A aplicação dos princípios da beneficência, da não maleficência, do respeito pela autonomia humana e pela justiça à criação e uso de robôs é muito discutível. Podemos aplicar estes princípios aos robôs, mas na prática a máquina pode, ainda assim, tomar decisões injustas ou incorretas.