A entrevista que Mário Centeno deu à RTP dissipou todas as dúvidas: o ex-ministro das Finanças quer ser governador do Banco de Portugal e já falou sobre o tema com o primeiro-ministro. O que fará António Costa se a esmagadora maioria dos partidos com representação parlamentar se opuserem à sua nomeação é a grande incógnita. Mas tudo o que se passou nos últimos dias já é motivo para nos preocuparmos. Parece até que já nos habituámos a que um grupo possa pôr e dispor do país, sem qualquer respeito pelas regras ou instituições. Já nem reparamos que nos dizem uma coisa um dia e fazem outra, passados poucos dias. Temos novos donos disto tudo, sem que isso pareça causar grande preocupação.

A partir desta segunda-feira, 15 de Junho, João Leão será o novo ministro das Finanças e Mário Centeno deixa de ser ministro mas, reparem, mantém-se como presidente do Eurogrupo até dia 13 de Julho, quando o mandato acaba. Entretanto, Centeno vai regressar ao seu lugar de origem, o Banco de Portugal, onde irá exercer o seu mandato de presidente do Eurogrupo durante mais um mês.

Temos então que o ministro deixa de ser ministro sem esperar o fim do seu mandato no Eurogrupo e vai liderar os ministros das Finanças do euro nas instalações do banco central. Qual é o problema, dirão? Nenhum, a não ser que a independências das instituições também se avalia pelos detalhes. Porque não há um espaço no Ministério das Finanças para Centeno levar o seu mandato europeu até ao fim?

A razão oficial para a saída de Mário Centeno é o calendário das candidaturas à presidência do Eurogrupo. O actual presidente do Eurogrupo teria de lançar as candidaturas a novo mandato até dia 11 de Junho e, considerou-se, seria estanho fazer isso e ao mesmo tempo não ser candidato. Mas, claro, que só se resolveu meio problema: o Eurogrupo agora tem um presidente que não é ministro das Finanças e passa a ser gerido a partir do Banco de Portugal.

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Mas este é apenas o mais recente episódio dos sucessivos casos que têm envolvido Mário Centeno.

Ficará também para a história o inédito processo da sua demissão. O primeiro-ministro anuncia a sua saída, com um grande elogio, tendo ao seu lado esquerdo o sucessor. Horas depois, já quase noite, o ainda ministro das Finanças Mário Centeno faz a conferência de imprensa de apresentação do orçamento suplementar, que elaborou, mas não vai defender, e pede ao seu sucessor que fale sobre as questões orçamentais. Nunca tal coisa se tinha visto. Mas qual é o problema? Nenhum. Primeiro-ministro e Presidente da República não vêm qualquer problema.

O Presidente da República e o primeiro-ministro também não identificam nenhum problema em dizerem ao país há menos de um mês que Mário Centeno fica no Governo, para depois nos dizerem que afinal não fica – entre 13 de Maio e 10 de Junho foram 28 dias dos 1664 dias que Centeno contou que foi ministro das Finanças. A realidade é de facto dinâmica.

Finalmente há o desejo de Mário Centeno de ser governador do Banco de Portugal. Um caso que promete também novos episódios.

Neste momento temos o Parlamento a fazer uma espécie de “Lei contra Centeno no Banco de Portugal”, com o PS a prometer que vai arrastar o processo para que o diploma não seja aprovado antes da decisão de nomeação do novo governador. Um exemplo lamentável, ver uns partidos a fazerem uma lei “ad hominem” e o PS a boicotá-la. O interesse público pouco interessa.

Imagine-se agora que Mário Centeno consegue o que tanto ambiciona e é o novo governador do Banco de Portugal. Pelo caminho percorrido, Centeno entrará na Rua do Comércio em Lisboa fragilizado. E o Banco de Portugal, depois de ter sido violentamente atacado nos últimos cinco anos, boa parte das vezes pela voz de Centeno, viverá mais uns anos de fragilização.

Mário Centeno, como quem o apoia, não vê nenhum problema, nesta sua passagem directa da Praça do Comércio para a Rua do Comércio. Dois dos exemplos que dão é o de José da Silva Lopes e Miguel Beleza. Esquecem-se que Silva Lopes, governador entre 1975 e 1980, assumiu essas funções num período muito especial da nossa história, quando tentávamos afirmar a democracia. E que Miguel Beleza assume o cargo de governador entre 1992 e 1994, meses depois de ter sido ministro das Finanças – deixou o cargo em Outubro de 1991 quando acabou a primeira legislatura completa de Cavaco Silva. Ou seja, não foi uma passagem directa, entre uma função e outra até houve eleições.

Além disso, os tempos eram outros, menos exigentes em matéria de incompatibilidades e o banco central não era independente – era o Governo que mandava nele. Por outro lado, o banco central está hoje envolvido numa série de dossiers bancários, sobre os quais Mário Centeno se tem pronunciado de forma que pode fragilizar a posição do supervisor nos tribunais. Basta que os advogados dos visados queiram que Mário Centeno, com o chapéu de governador do Banco de Portugal, explique porque considera que no caso BES se esteve perante “a mais desastrosa resolução bancária da história”.

Há ainda todo um conjunto de decisões tomadas pelo ministro das Finanças que podem acabar na mesa do governador. E Centeno governador irá contra Centeno ministro? Depois há ainda as nomeações que Centeno fez, nomeadamente para a Comissão de Auditoria: devem ser da confiança do Governo mas passarão a ser da confiança do governador.

Para além de todos estes aspectos, que Centeno considera pouco importantes se considerarmos que disse na RTP que a independência não é uma abstração, há o próprio peso da instituição. O Banco de Portugal precisa de um governador que deixe de estar sob ataque permanente do Parlamento e do Governo, como aconteceu até agora com os governos de António Costa e especialmente pela voz de Mário Centeno. Não temos assim tantas instituições fortes que nos possamos dar ao luxo de delapidar. Mário Centeno poderia ter o peso político para recuperar esse poder do Banco de Portugal, mas no caminho para lá chegar pode perder o estatuto que ganhou. Claro que o pode recuperar, depois, já no cargo. Mas como diz Ana Sá Lopes, Mário pode estar a desfazer o mito Centeno.

Vamos viver uma crise sem precedentes e temos o ministro das Finanças mais popular da histórica recente portuguesa a querer ser governador do Banco de Portugal, em vez de se atirar para vencer o desafio de gerir o Tesouro nestes tempos tão difíceis. Não é fácil ser ministro das Finanças num país muito pendurado no Estado, mas é inédito na nossa história ver um ministro sair porque quer outro cargo.

A última palavra sobre a sucessão de Carlos Costa no Banco de Portugal será de António Costa. Nenhum primeiro-ministro pode gostar de perder o seu ministro das Finanças numa crise económica, muito menos um ministro que transmitia confiança, factor tão importante para recuperar desta crise. Costa também não pode ter gostado.

Centeno diz que já falou com o primeiro-ministro sobre a ida para o Banco de Portugal, mas António Costa pode acabar por considerar que não tem condições políticas para o nomear. Na altura em que Pedro Passos Coelho decidiu manter Carlos Costa no Banco de Portugal, o então líder da oposição António Costa considerou que devia ter sido ouvido e não foi. Se a maioria dos partidos disser a António Costa que não, que não considera Centeno uma boa solução, o que fará o primeiro-ministro?