No dia 9/04/2020, após dar nota de que não havia previsão sobre a abertura do ensino pré-escolar, o Primeiro Ministro, confrontado com a questão das mensalidades dos infantários particulares afirmou que “essa é uma matéria que tem a ver com os próprios [pais] e os proprietários das creches”.

Demitindo-se o Governo de intervir, a questão que se coloca é se os estabelecimentos podem ou não cobrar pelos serviços quando as crianças se encontram em casa. E, podendo, em que medida.

Na (provável) falta de cláusula contratual que dê resposta a esta atípica questão terá de se observar o critério legal que se acha contemplado essencialmente nos artigos 790.º e 793º do Código Civil: perante a impossibilidade da prestação a contra-prestação tem de ser proporcionalmente reduzida, mais atribuindo ao cliente o direito de resolver o contrato se justificadamente não tiver interesse no cumprimento parcial. O risco corre, pois, por conta das escolas.

Todavia, tem-se assistido à transferência do risco da actividade económica e empresarial para os clientes através da atitude unilateral e ad hoc das escolas de concessão de descontos reduzidos sobre as mensalidades (associado à não cobrança de actividades extracurriculares e outros serviços não prestados como alimentação ou transportes).

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No fundo, as escolas têm seguido a posição veiculada pelas associações do ensino particular, segundo a qual os estabelecimentos devem abdicar do lucro, fazendo descontos proporcionais aos custos que conseguem poupar, seja por via da ausência de consumos seja por reflexo das mediadas de apoio empresarial que vêm sendo tomadas.

Todavia, esse não é o critério legal para o qual o Governo, por omissão, remete.

Assim:

  1. Se a prestação for objectivamente impossível (artº 790 do Código Civil), a obrigação extingue-se; será, a nosso ver, o caso dos berçários e creches em que a prestação contratual é insusceptível de ser colmatada à distância.
  2. No pré-escolar, é legítimo admitir que os estabelecimentos que têm mantido algum contacto com os alunos através de vídeo-chamadas e propostas de actividades lúdico-pedagógicas estejam a prestar o que lhes é possível, pelo que têm o direito a receber a contra-prestação em termos proporcionais (artigo 793.º do mesmo Código).
  3. Tendo em conta que também aqui o dever de guarda da criança é componente essencial do contrato e que os objectivos da educação pré-escolar definidos na respectiva Lei Quadro são impossíveis de ser convenientemente atingidos à distância, tal significará, a somar à supressão dos extras não prestados, uma redução substancial da mensalidade base.
  4. A definição de “soluções” unilaterais por parte do contraente impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações não tem apoio legal, sendo aconselhável (ainda que reconhecidamente difícil) que as questões sejam negociadas entre as partes.
  5. Na falta de acordo, o cliente pode recusar-se a pagar uma factura cujo valor considere não ser proporcional ao serviço prestado, devendo comunicá-lo por escrito à escola, desejavelmente propondo o valor que entende corresponder à predita proporção ou resolver o contrato invocando, justificadamente, que não tem interesse no cumprimento parcial.
  6. Ficando o valor da factura em aberto, o estabelecimento poderá socorrer-se dos meios legais para tentar cobrar o mesmo e eventuais penalizações contratuais, abrindo-se uma disputa judicial sobre os respectivos argumentos.

Em síntese, para além da supressão de facturação das ditas componentes variáveis (serviços objectivamente não prestados), o montante a pagar dependerá de saber quanto é que está a ser parcialmente cumprido pela instituição, sendo empiricamente perceptível que, neste sector etário, a utilização dos meios telemáticos corresponderá a uma reduzidíssima percentagem de execução do programa contratual.

A idade das crianças, o pressuposto da confiança inerente à educação pré-escolar e a falta de resposta pública adequada merece uma reflexão adicional.

As atitudes unilaterais tomadas pelos estabelecimentos de ensino, que temos por ilegais, parecem partir do pressuposto – verdadeiro – de que os pais, ainda que as considerem injustas, tendencialmente soçobrarão face a tais imposições a fim de evitar prejudicar os seus filhos.

Assistimos ao providencial salve-se quem puder, apostando os estabelecimentos em manter-se à tona de água ao mesmo tempo que promovem a erosão da confiança dos pais – factor essencial quando estão em causa crianças de tão tenra idade.

Para evitar tais nefastas consequências deve pedir-se um esforço suplementar de franqueza, transparência, negociação e flexibilidade às partes, procurando, através do acordo, soluções que coloquem em perspectiva não apenas o presente, mas também os próximos anos (das crianças e das instituições).

Não sendo possível encontrar soluções consensuais é de prever que, por força da crise económica e da aplicação estrita dos critérios legais, muitos estabelecimentos não sobreviverão.

Tal fará diminuir a oferta com inerente aumento dos preços no próximo ano lectivo (também para compensar as perdas do negócio deste ano) e acentuará a elitização do ensino ao mesmo tempo que criará uma maior sobrecarga à já débil resposta pública das creches e do pré-escolar.

Perante a relevância social e económica dos valores em presença, o Governo tem a obrigação de encarar mais esta questão como um importante desafio decorrente da pandemia, a fim de prever e impedir que as consequências da aplicação da Lei e das insensíveis regras do mercado à presente conjuntura tenha efeitos perniciosos num futuro que se quer não muito distante e que seja de superação das dificuldades agora presentes.