Esta semana, numa excelente reportagem efectuada por Fernanda Câncio sobre as denúncias de assédio sexual no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, deparei-me com uma passagem, adjacente ao tema principal, que me fascinou. Um dos graffiti que surgiram nas paredes do CES remetia para a expressão usada pelo sociólogo para designar “as linhas cartográficas “abissais” que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial”, e que, considera Boaventura Sousa Santos, subsistem “estruturalmente no pensamento moderno ocidental”. O sociólogo associa a “injustiça social global” à “injustiça cognitiva global”, concluindo que “a luta por justiça social global” exige a “construção de um pensamento “pós-abissal”. Será isto ciência social? Isto é, ciência que analisa as sociedades? Ou, para ser mais transigente e não querendo presumir que todos querem fazer ciência, será isto sequer uma forma de análise sistemática e séria das nossas sociedades a ser realizada e promovida numa universidade? A meu ver, não.
O relativismo extremo, a ideia de que não há uma “verdade” a ser estudada e analisada, é errada, mesmo em situações relativas a eventos humanos e sociais. O pronunciamento militar das forças armadas portuguesas no dia 25 de Abril de 1974 aconteceu. A guerra que denominamos Segunda Guerra Mundial aconteceu. O tráfico transatlântico de escravos aconteceu. Negá-lo — como negar imensos fenómenos sociais que aconteceram e acontecem — é absolutamente ridículo. Negar que estes fenómenos têm causas (naturalmente, causas múltiplas) e consequências que podem ser mais ou menos descritas objectivamente também é falacioso. É também errado afirmar que não existem padrões de comportamento de seres humanos e sistemas sociais, tendências mais ou menos generalizadas, ou mesmo a possibilidade de utilizar conceitos coerentes e estáveis, lógica e formulações teóricas para conhecermos melhor a nossa história e as nossas sociedades.
Um excelente exemplo (e é apenas um exemplo de milhares possíveis e dezenas de áreas do conhecimento), que ilustra bem a possibilidade da ciência que analisa sociedades é a hipótese da “força dos laços fracos” (strentgh of weak ties) formulada originalmente por Mark Granovetter em 1973 no American Journal of Sociology. A ideia é a seguinte: todos os seres humanos têm laços fortes (como a nossa família e amigos próximos) e laços fracos (ligações mais distantes que em Portugal se denominam “os conhecidos”). A hipótese formulada por Granovetter é que, surpreendentemente, os laços fracos são absolutamente essenciais na difusão de informação, ideias e oportunidades por toda a rede, uma vez que permitem que grupos muito distantes de pessoas possam aceder à mesma informação. Uma vez que os laços fortes nos são muito próximos, acabamos por partilhar grande parte da rede com eles (isto é, temos os mesmos amigos e conhecidos). No entanto, os laços fracos permitem-nos chegar a pessoas mais distantes e, como tal, chegar a grupos de pessoas que poderão ter informação diferente da nossa. Granovetter testou inicialmente esta hipótese num inquérito que realizou a cerca de 280 pessoas na área de Boston em que questionava como é que elas tinham obtido informação sobre o emprego que tinham. Realizou também cerca de 100 entrevistas pessoais. Chegou à conclusão de que a maioria das pessoas tinha obtido informação sobre o emprego que ocupava através de laços fracos e não de laços fortes. Esta hipótese já foi replicada inúmeras vezes e testada de forma experimental, nas mais variadas áreas, de Silicon Valley à sociologia qualitativa, e parece ser corroborada. Há, de facto, um “paradoxo” dos laços fracos, na medida em que um único laço forte é mais valioso do que um único laço fraco, mas são os laços fracos que transmitem a maioria da informação pela rede (claro que, como todas as hipóteses científicas, poderá vir a ser descartada no futuro se tivermos observações e nova informação que a contradigam de forma sistemática). Negar que as ciências sociais não existem ou não são possíveis é negar milhares de exemplos como estes, na sociologia, na economia, na psicologia, na ciência política e (até) na história.
E, na verdade, ninguém — nem os puristas das ciências exactas, nem os ultra-relativistas pós-modernos — realmente acredita ser impossível atribuir causas e efeitos, aceites de forma generalizada, a fenómenos humanos e sociais, como mostram as acções e discurso corrente desses puristas e relativistas. Isto é, mesmo que digam não acreditar ser possível analisar a realidade social de forma objectiva e de acordo com parâmetros de aceitação generalizada, as suas acções e palavras mostram que não acreditam verdadeiramente nisso, pois pressupõem a existência daquilo que negam. Um cientista social “não-positivista” que acredite ser possível discernir desigualdades sociais, apurar as causas dessas desigualdades e agir colectivamente com base em práticas políticas, sindicais e organizativas para mitigar essas desigualdades está, evidentemente, a revelar uma série de pressupostos positivistas. A título de exemplo, se eu tivesse um euro por cada vez que ouvi um historiador não-positivista dizer que há lições a retirar do passado histórico ou um sociólogo pós-moderno dizer que toda a nossa sociedade é patriarcal devido a um legado histórico de desigualdade de géneros, ambos sem perceberem a contradição entre as suas supostas epistemologias e o que dizem, estaria rica.
Conclusão: estes cientistas sociais não estão verdadeiramente a propor uma epistemologia radicalmente nova, estão, isso sim, a utilizar uma linguagem pseudo-epistemológica para justificar a lente político-ideológica que utilizam na sua análise da realidade. Naturalmente, cada um é livre de fazer o que quer. No entanto, torna-se um problema para todos nós quando tais lentes e análises são utilizadas como exemplo daquilo que é a ciência social ou quando nos impedem de progredir colectivamente na busca de conhecimento. O problema das lentes e análises politico-ideológicas numa análise que se quer científica, ou pelo menos sistemática, da realidade é que, quando confrontados com factos e observações contraditórios à própria ideologia, estes são ignorados ou racionalizados por forma a preservar a ideologia.
É certo que todos os seres humanos dependem da sua percepção para poderem entender o mundo à sua volta, que essa percepção está sujeita a alguns elementos que podem distorcer a nossa impressão da realidade, e que vale a pena estudar como é que essas percepções e distorções são simultaneamente causa e consequência dos variados fenómenos sociais, históricos, psicológicos e biológicos. Mas tal não significa que não haja uma realidade para além das nossas impressões. Mais, como quase todos os psicólogos cognitivos nos dizem, as mentes humanas são capazes de dois tipos qualitativamente diferentes de processos cognitivos: uns são automáticos, rápidos e requerem pouco esforço; outros envolvem cognição consciente, voluntária, com esforço, lenta e mais aberta a informação. Em conjunto, os dois processos não fazem do ser humano um ser perfeitamente racional, mas tornam-nos seres extraordinariamente inteligentes. Naturalmente, a ciência baseia-se no segundo tipo de pensamento, menos propensa a enviesamentos rápidos e distorções. Isto é, mesmo que a nossa cognição não seja perfeita, consegue ser muito inteligente e conseguimos, com esforço, trabalhar para ultrapassar os nossos próprios enviesamentos na construção de um pensamento e análise lógicas e sérias.
Nem Thomas Kuhn, frequentemente mal-entendido, tinha um entendimento niilista da ciência e do progresso científico. Na verdade, mesmo para Kuhn, os momentos de ciência “revolucionária” que substituam um grande paradigma por outro eram momentos de progresso científico no sentido lato (ou, pelo menos, evolutivo) da palavra. Afinal de contas, um paradigma que substitui outro deve não só ter maior capacidade explanatória, como explicar também a maioria dos factos explicados pelo paradigma anterior.
Não há duas culturas porque há, na verdade, uma contiguidade inevitável daquilo que as várias ciências (físicas, biológicas, sociais, humanas) estudam e entre os próprios métodos de estudo. Desafio os leitores a delimitarem fronteiras estanques entre as neurociências e a ciência cognitiva, mas também entre a ciência cognitiva e a psicologia social, entre a psicologia social e a economia comportamental, entre a economia comportamental e a sociologia analítica, e assim sucessivamente. Desafio também os leitores a identificarem onde está a fronteira que separa a possibilidade da impossibilidade de quantificação de um grupo de informações qualitativas. Por isso mesmo, entristece-me e revolta-me quando vejo, de um lado ultra pós-modernos ideológicos, de outro lado cientistas “duros” intolerantes, ambos juntos a argumentar que as ciências sociais não são possíveis.
Revolta-me ainda mais quando vejo pessoas inteligentes com poder institucional, como o actual reitor da Universidade de Lisboa, Luís M. A. Ferreira, afirmar no seu Programa de Acção 2021-2025, que “nem sempre nos apercebemos do papel fundamental das ciências humanas e sociais na investigação em universidades abrangentes como a nossa. Para além de toda a sua riqueza nas mais diversas áreas, as denominadas humanidades dão às ciências enquadramentos e perspectivas históricas e sociológicas decisivas para a sua total compreensão, particularmente necessárias em tempos marcados por profundas transformações, e tornam as ciências sociais uma ponte ideal entre as diversas áreas.”
Note-se o verdadeiro significado desta afirmação do actual reitor. Em primeiro lugar, parece não saber distinguir com clareza humanidades de ciências sociais e parece não considerar as últimas verdadeiras “ciências”, mas sim “pontes” entre áreas. Mais, o valor das humanidades é ajudar as ciências sérias, como uma muleta ou talvez uma obra de arte bonita que muda a aparência da nossa salar de estar. Claro que esta visão é muito comum em cientistas ditos duros, apesar da medicina veterinária, área do reitor, ser, ironicamente uma área muito pouco “dura” quando comparada com a física e cujos estudos e ensaios se aproximam, em métodos, de muitos estudos efectuados em psicologia, economia e sociologia experimentais e quantitativas (e a medicina até usa, de tempos a tempos, métodos qualitativos).
No entanto, creio que também não ajuda nada – e, na verdade, prejudica o projecto colectivo de conhecimento das nossas universidades e sociedades – termos supostos cientistas sociais como Boaventura Sousa Santos afirmar que “as epistemologias do sul não são um programa universitário, são um programa de lutas sociais” e que “na luta contra a opressão e na procura de alternativas, o conhecimento deve ser avaliado e validado de acordo com sua a utilidade em maximizar as possibilidades de sucesso das lutas contra a opressão. De forma pragmática, as epistemologias do Sul visam aumentar a resistência contra o capitalismo, o colonialismo, e o patriarcado” (The End of the Cognitive Empire, p.38, tradução livre).
A má moeda elimina a boa moeda quando a ambas é conferido o mesmo valor. Distingamos a qualidade daquilo que é produzido no campo das ciências sociais, porque há coisas de grande qualidade, que se baseiam em metodologias sérias para melhorar aquilo que sabemos sobre as nossas sociedades e sobre nós próprios, e que não devem ser equiparadas à produção de Boaventura Sousa Santos.