Quem assistiu às movimentações militares do 25 de Abril no centro de Lisboa, escreveu algures que “os tanques tinham um ar gigantesco nas ruas estreitas”. Essa é, possivelmente, uma das definições mais eloquentes de democracia: a possibilidade de fazer passar, por entre ruas estreitas, um mundo gigantesco.

Passados 50 anos, se para alguns as ruas foram demasiado estreitas, para outros os tanques terão sido excessivamente largos. Quer para uns, quer para outros, Portugal parece não ter melhorado o suficiente. “Falta cumprir Abril”, diz-se. Mas não podemos ter senão espanto ao ouvir esta afirmação. Podemos imaginar um país melhor, mas Portugal é hoje um país descolonizado, democrático e mais desenvolvido. E dizer que Abril ficou aquém das expectativas, denuncia mais o irrealismo destas, do que o sucesso da “madrugada que eu esperava”. A consequência tem sido, por isso, colorir ou branquear, quer a ditadura, quer a revolução, conforme importa agradar à sensibilidade e ao gosto. No entanto, até mesmo aqueles que dizem que vivemos um tempo de censura mais gravosa do que aquela instituída pelo Estado Novo, decerto não terão dificuldade em reconhecer que, ao menos hoje, lhes é possível escrever e denunciar isso que consideram injusto, sem qualquer vigilância ou coação.

Ainda assim, limitar a explicação do significado do 25 de Abril ao que se podia ou não podia fazer é um erro. Um erro, acima de tudo, porque num regime que privava pelo seu elitismo, como também ainda é o nosso, alguns podiam fazer muito, enquanto muitos não podiam fazer quase nada. É certo que a sorte e a arbitrariedade desempenham um papel incontornável nas sociedades, mas talvez o desempenhem menos hoje que há 50 anos atrás. Se por um lado, Portugal continua a ser o país onde um não licenciado dificilmente chega à Assembleia da República ou onde é improvável que um não académico seja nomeado ministro ou diretor-geral, por outro já não é preciso ser homem, “cabeça de casal” ou mulher licenciada para se possuir direito de voto, do mesmo modo que, hoje, “a vontade de ler” é a única condicionante de acesso a uma publicação. É certo que houve quem lesse, em Portugal, Marx ou Nabokov antes da revolução, mas sem dúvida que nessa lista não estaria o nome do meu bisavô, contratador de gado, num concelho do norte de Portugal. Não porque não sabia ler ou porque não tinha vontade de o fazer, mas porque os #nãosepodiafazer eram mais para uns, do que para outros.

Como escreveu sabiamente o Pe. Manuel Antunes, é possível dizer que a tirania “teve matizes, temperamentos, momentos de sístole e de diástole”, mas é inegável que “no seu conjunto, tirania foi”. É possível dizer-se que o regime que em 74 caiu, nunca teve a dimensão dos “atropelos, agravos e injustiças” que a hecatombe do século XX atingiu em outras latitudes, mas não é correto dizer-se que não matou, torturou ou privou, injusta e arbitrariamente, de direitos elementares, o comum dos seus cidadãos. A verdade é que é, acima de tudo, o fim dessa discricionariedade que festejamos. Não tanto o sucesso económico, que não é possível exigir à democracia, como se ela fosse uma formulação mágica de crescimento e prosperidade, muito embora isso tenha sido irresponsavelmente prometido por muitos. Mas o país que já não necessita de ver os seus mais novos condenados, numa lotaria improvisada, a acabarem “de maca” ou “ainda mais deitados”, muito embora o drama da emigração da “geração mais bem preparada de sempre”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A “nação” e o “império multirracial”, que hoje são, não raro, classificados com pretensas virtudes, surgem para fazer esquecer que estes conceitos, transformados à força em realidade, apenas serviam para engalanar os salões e os peitos de algumas fardas, em especial de quem dificilmente via os seus sonhos rasgados, por esse mesmo “império” e “glória”.

De facto, como também afirmou o mesmo Pe. Manuel Antunes, Portugal vivia sob um regime, cuja estrutura “permitia a gentes de vários bordos e rebordos aproveitar os mitos correntes no mercado para fazerem o máximo de fortuna possível”. “Fortuna de ordem muito vária”, concluía.

Todavia, Portugal não foi, como hoje não o é tampouco, o país vítima de qualquer mal. A “nação” que defendia o “decoro”, o “recato”, o “pudor”, a “ordem” e o “bem”, era a mesma que usava uma “polícia de vigilância” – nome que provavelmente encantaria hoje mais que nunca – para estimular um clima de denúncia seja por vingança, inveja, ou rivalidade. Daí que o famoso “a bem da nação”, com o qual muitas denúncias à PIDE terminavam, estaria muito mais correto se dissesse: “a bem de mim próprio”.

Daí que hoje é urgente o 25 de Abril que não seja o dos saudosistas, venham eles das revoluções mitificadas ou do colonialismo engravatado. Porque se em 74 foram muitos os que fizeram filas em bombas de gasolina, em bancos e supermercados, com medo do que seria o futuro, o pior que podemos fazer para celebrar estes 50 anos é reduzir a vida à sobrevivência ou à luta intestina comandada pelo terror e pela avidez.

PS: Faleceu, no início desta semana, o Pe. José Maria Brito. Alguém de quem se poderia dizer fazer parte do pequeno grupo daqueles a quem muitos imensamente devem, muito embora sem o saberem. A sua morte, ainda para mais, em circunstâncias tão abruptas faz-nos recordar como, mesmo para os crentes, o mal é um embaraço.