Poucas coisas na vida do intelecto despertam o meu interesse. Uma delas é a resposta à questão, aparentemente simples, que versa assim: como e porque é que acabámos neste Estado? De onde veio essa ideia peregrina de nos organizarmos, enquanto sociedade, em torno do Estado? A filosofia, nomeadamente a política, forneceu um par de respostas a esta questão, as quais primam por não fazer sentido nenhum. Hobbes foi um dos muitos que tentou justificar o que não tinha justificação.

Ora, quis o destino que eu tenha decidido há um par de meses reler a obra de Michel Foucault. Recolhi os livros que havia lido faz mais de 10 anos, e adquiri os poucos que ainda não tinha lido porque não haviam sido publicados. Foi assim que, durante a minha prisão domiciliária, li as aulas que Foucault leccionou no “Collège de France” no ano académico de 1971-1972 (publicadas em Inglês com o título Penal Theories and Institutions). Ao contrário de Hobbes (que Foucault, e bem, critica), Foucault fornece uma explicação bastante simples para a origem do Estado. Eis um resumo.

O Estado, tal como o entendemos hoje, ganha força (o que é diferente de ter sido ‘inventado’) como resposta a um conjunto de movimentos populares do século XVII os quais (sentem-se, por favor) lutavam por uma redução da carga fiscal. Foucault analisa em detalhe o caso do movimento dos Nu-Pieds – movimento de revolta popular que, no século XVII, se opõe, na Normandia, ao aumento significativo de impostos sobre os produtos locais. O Rei francês reage à revolta de forma particularmente interessante: primeiro esmaga a revolta por via militar. De seguida envia um emissário com poderes para condenar à morte quem entender. O emissário, de nome Séguier, ocupava o cargo equivalente ao que hoje em dia designaríamos por Director-Geral das Finanças. Para Foucault isto é um pormenor importante, pois sinaliza o início do fim do Direito tal como o entendíamos na Idade Média: Séguier deu-se ao luxo de condenar vários dos populares à morte sem julgamento, sem interrogatório, sem nenhum dos procedimentos legais que haviam caracterizado a evolução do Direito ao longo de séculos. Ao contrário da Inquisição, que julgava os suspeitos, o aparelho administrativo francês arrogou-se o direito de condenar sem julgamento. Foucault vê aqui o inicio do reforço dos poderes administrativos do Estado, os quais tendem a estar de forma perigosa à margem da lei, tal como já Hayek havia referido antes de Foucault.

Para esmagar a revolta, o Rei, por via do seu Director-Geral das Finanças, condenou à morte os envolvidos. Contudo, o mais importante estava por fazer: garantir a coleta fiscal. Ora, a solução encontrada para tal é deliciosamente macabra: os nobres e burgueses locais pagaram ao Rei os impostos devidos pela população local; e o Rei simplesmente disse à população local que desde esse momento estavam em dívida para com os nobres e burgueses locais. Ao mesmo tempo (por favor sentem-se de novo, que estas coisas não se devem ler de ânimo leve), o Rei decide legislar no sentido de limitar a posse de armas: a partir dessa altura só os agentes do Estado, os nobres e os burgueses poderiam carregar armas.

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O Estado “nasce”, assim, da necessidade de reforçar o poder régio, com o fim de garantir a coleta de impostos, colocando a população numa situação de dívida permanente perante os senhores locais e devidamente desarmada por forma a evitar movimentos populares futuros.

Colocado de forma diferente: o Estado, como o conhecemos hoje, “nasce” para recolher impostos para os ricos (e não para distribuir riqueza, muito menos para melhorar a vida das pessoas); as primeiras leis que limitam o porte de armas surgem para que o Estado recolha impostos para os ricos (e não para garantir a segurança dos indivíduos).

Nos anos que se seguiram, enquanto leccionou no “Collège de France”, Foucault voltou ao tema do reforço do lado administrativo do Estado: o que começou por ser uma estratégia para garantir a coleta fiscal, passou a uma centralização dessa função administrativa, abandonando assim a dependência real dos nobres e dos burgueses locais; mais tarde, por volta do século XVIII, o Estado chama a si a garantia da segurança das populações e dos indivíduos. Segurança essa que não se limitava ao “policiamento” (invenção que ocorre pela mesma altura, um pouco por toda a Europa), mas que incluía a higiene e a saúde. Todas essas funções, encaradas ao longo do seu desenvolvimento como sendo neutras (isto é, para o bem de todos e de cada um), permitiram ao Estado tomar controlo de todos os elementos da vida de qualquer indivíduo. Em meados do século XX, Hayek (entre outros) alertou para o perigo inerente aos centros burocráticos que, sob a alçada do Estado, na verdade operam à margem do Estado, do poder político e até da lei: isto é, os burocratas estatais têm o poder de determinar elementos da vida pública que não foram necessariamente escrutinados publicamente, não têm ligação clara com programas políticos sufragados eleitoralmente e estão protegidos, não raras vezes, por normas administrativas que contrariam princípios fundamentais do Direito.

É através da análise histórica do desenvolvimento administrativo do Estado que conseguimos perceber como chegámos a este Estado. Pese embora os alertas da esquerda (Foucault) e da direita (Hayek), de forma silenciosa, mas determinada, as burocracias estatais alcançaram um poder para lá do razoável. Quando o cidadão primeiro paga a multa, e só depois pode reclamar junto das finanças, sem que tal reclamação tenha o mínimo de efeito ou garantia de justiça, na verdade esse cidadão é vítima de um processo histórico cujo início remonta ao século XVII. Enquanto analisa o movimento dos Nu-Pieds, do século XVII, Foucault não esquece a Igreja Francesa da época. A Igreja, conta-nos Foucault, perante a condenação à morte dos seus fieis, classificou as acções do “Director-Geral das Finanças” da época, Séguier, de pecaminosas e ofensivas a Deus. Diz-nos Foucault, referindo-se à Igreja da época: ‘They clearly perform here the role of checks, of moderators of royal power.’

Quão longe estamos da Igreja de 2020, subserviente ao poder estatal e, portanto, operando no limite da heresia pois esquece quem é o seu Senhor. Diz-nos Foucault: “If the King turns away from his religious duty, a simple preacher may reprimand him in public and to his face.”

Cerca de 400 anos depois, chegámos a este triste Estado, em que temos a Direção-Geral de Saúde, um satélite administrativo do Estado criado para nos lembrar, todos os Invernos, que convém vestir um casaco quando faz frio, liderado por uma tal dona Graça Freitas, a emitir, e a literalmente carimbar com o seu selo, normas relativas ao Sacramento da Comunhão. O silêncio da Igreja perante isto já era suficientemente mau. Mas o estado de subserviência herética é tal, que ao silêncio a Igreja decidiu adicionar padres no Facebook a partilhar as normas escritas por sua Eminência a dona Freitas e enviar Cardeais a várias cerimónias comemorativas da glória estatal.