É daquelas perguntas a que um açoriano se habituou de há uns anos para cá. Não bastava quererem saber quantas ilhas eram, se já tinha ido a todas, se era melhor ou pior do que a Madeira (isso nem sequer é uma competição), se havia semáforos, internet, se dava para ir a nado de uma ilha para a outra ou porque é que não falávamos “açoriano”, Nemésio e Camões lhes perdoem. A partir do momento em que se banalizou uma certa voga turística, passou a ter de responder também a esta: “já subiste o Pico?”

Um indivíduo tentou, durante muito tempo, com diferentes respostas. Que conhecia um atalho e não era preciso passar por lá no trajecto casa-escola-casa; que era mais giro dar mergulhos nas centenas de zonas balneares do arquipélago, servidas por águas muito mais quentes e límpidas do que a média nacional; que as montanhas também são belas vistas de baixo; e que, alerta a quem não se contentasse com este último naco de sabedoria zen, lá em cima não os esperaria propriamente um rooftop com martinis, DJs e espreguiçadeiras, para curtir as vistas no fim dum dia de trabalho.

Tudo inútil. A questão faz parte duma obsessão muito contemporânea: tudo fazer, tudo experimentar, tudo coleccionar. Como se, mais do que a velha analogia da história que vamos escrevendo, a vida fosse uma caderneta com um conjunto de cromos que temos de completar, sob pena de chegar ao fim e a termos vivido pela metade, perdido qualquer coisa, quem sabe se aquilo que, enfim, nos faria felizes.

Talvez tudo tenha começado precisamente a propósito de uma montanha, há cem anos redondos, quando um jornalista perguntou a George Mallory, líder das primeiras tentativas de alcançar o topo do Evereste, porque é que queria fazer aquilo afinal: “Because it’s there.” “Porque está ali.” Simples. E, uma vez tendo-o visto, como resistir? Ao desejo. Ao desafio. Impossível “desvê-lo”. Impossível contentar-se em olhá-lo sem o “conquistar”. O alpinista seria encontrado morto na montanha algum tempo mais tarde, sem que tivéssemos sabido se alguma vez chegou ao topo e morreu na descida ou se ficou tristemente pelo caminho antes disso. Sobreviveu-lhe a frase – e espalhou-se a obsessão.

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Cem anos volvidos, todos os dias, não uma, mas múltiplas pessoas sobem com sucesso ao ponto mais alto do mundo. Mas enquanto se banalizou o extraordinário, o ridículo atinge novos máximos de altitude, com aventureiros a morrerem regularmente não da subida nem da queda, mas de esperar ao frio e sem oxigénio, numa fila a mais de oito mil metros de altura, para tocar o cimo de uma montanha titânica engarrafada de gente à procura de um sentimento qualquer de superação que as salve não se sabe de que ameaça.

Bom, mas isto para lhe contar que o cronista é um fraco e cedeu este Verão. Nos Açores que se lhe apresentaram desde a infância como réplica à escala do sistema solar, nove ilhas como nove planetas, habitando a Terceira ilha como a Terra o terceiro planeta, com o mais pequeno lá ao fundo, Corvo a fazer de Plutão ou Plutão armado em Corvo, é óbvio que seria o Pico o nosso Evereste. Farto de responder à maciça questão e já sem ter resposta para ele mesmo, deu, portanto, paradoxalmente por si a olhar o assunto do mesmo ângulo que Mallory: para um, porquê tanta obstinação em tentar; para o outro, porquê tanta em não o fazer?

E lá foi, depois de duas noites mal dormidas para a ansiedade e todos os seguros de vida feitos: data estudada, companhia, guia marcado, calçado de astronauta adquirido, o impermeável, o creme, a luva, o boné, a segunda camada, a dose cientificamente estudada de comes e bebes para sobreviver à desgraça e, ainda assim, conseguir carregá-la às costas sem causar danos irreversíveis à coluna. E tendo chegado lá acima dos 2351 metros e voltado cá abaixo, subida e descida a montanha e a contradição, tem a contar-vos que sim senhor, talvez haja mesmo algum ponto nisto de ir e não ficar só pasmado a olhar.

Afinal, como em quase todas as provas, a história de como as perdemos ou superámos fala sobretudo de nós mesmos. Não é bem o Pico nem o Evereste que escalamos, mas os nossos medos de falhar ou sofrer, física ou psicologicamente, de não estarmos à altura não da montanha, mas da ideia de quem achamos que deveríamos ser. Mais do que o Evereste, confesso-lhe sempre ter olhado para a extraordinária montanha açoriana como uma espécie de deus: majestosa, tudo vendo e pairando sobre tudo, sempre constante, mas, ao mesmo tempo, mudando a cada momento, consoante a luz, a hora, o clima, a posição do observador. Vestindo-se e despindo-se de nuvens, mantos ou véus, de azul, verde, violeta, vermelho, branco ou negro. Sabendo de antemão tudo o que acontecerá amanhã; enviando-nos sinais que ainda não sabemos ler; lembrando-nos, todos os dias, do nosso tamanho, da nossa insignificância, mas, ao mesmo tempo, nunca nos abandonando.

Do que mais temia, portanto, ao subir o Pico, era perdê-lo como deus. Sofrer demasiado com as dores nos joelhos, o calor, o frio, a imprevisibilidade; cair, guardar uma má recordação ou pior: dessacralizá-lo. Mas um deus é um deus e um indivíduo já devia ter aprendido a não ter a soberba de achar saber melhor do que eles o que fazer. E assim, oito horas e nove quilómetros de muita inclinação, rocha e pedra solta depois, foi o cronista à montanha e voltou ainda mais convertido: o deus deixou-o ver o céu miraculosamente limpo lá de cima e voltar sem uma esfoladela, a confiar mais nele mesmo e em como é protegido pela sorte e, mais importante do que tudo, a nunca olhar muito lá para cima nem muito lá para baixo. A vida faz-se melhor quando nos concentramos só nos dois metros à nossa frente. Amem os vossos Everestes.