Na extraordinária reflexão histórica que representa o livro de Stefan Zweig “O mundo de ontem”, é descrito um pequeno apontamento, amargo e exclamativo, de um amigo, viajante russo de antes de 1914: “Para um homem viajar agora não basta ter um corpo e uma alma. Precisa de um passaporte!”
Para nós agora embrenhados em regulamentos e codificações infinitas, a exclamação é quase risível. Mas não devia. Retrata um tempo em que as pessoas – se bem que muitas vezes obliteradas violentamente por um qualquer pogrom fosse ele de que cor fosse – eram, em primeiro lugar julgadas pelo que eram. Como seres humanos diversos e inteiros e com a aceitação – coisa extraordinária hoje! – apenas da sua palavra.
Eu sou Ivan! Ou Jean! Ou John! Ou João!… E numa fronteira, fosse ela qual fosse – aliás no mundo de ontem, voláteis e pouco definidas – bastava passar, às vezes nem se dizendo quem era. Teoricamente parecido com a UE de hoje, se ela não fosse o inferno de burocracia que inquestionavelmente é.
A mentalidade que, no mundo de ontem, existia, era-o por via de uma vida muito colorida, hierarquizada das mais diferentes maneiras, romanticamente entrelaçada numa forma de fazer as coisas e na relação das pessoas, com um reconhecimento de comunidades separadas pela distância, que se encurtava graças ao comboio, mas não permitindo a sua diluição num todo, e, last but not the least, em que a informação oficial se restringia aos jornais, necessariamente reservada portanto a alguns.
Estou a gabar o mundo de ontem? Não. Estou a procurar dizer que a sua mensagem basilar de civilização devia ser ponderada hoje, levado por uma série de acontecimentos que, sem nada aparentemente terem em comum, revelam que ela se perdeu. Refiro-me aos acontecimentos de selvajaria acontecidos em Portugal em bairros mais ou menos suburbanos, ao acolhimento feito aos responsáveis políticos à conta das cheias de Valência, em Espanha, e à eleição do novo Presidente dos EUA.
Que similitudes podem ser desenhadas entre acontecimentos tão diferentes? Na minha modesta opinião duas:
- O desaparecimento de referências comuns, de pensamento e comportamentais, que eram dadas por uma cultura equilibrada e lentamente absorvida pelo que se dizia e fazia em casa, na escola ou na rua;
- O desequilíbrio provocado por uma informação imediatista, sem qualquer ponderação e a mais das vezes muitíssimo orientada.
Ou seja: as pessoas do mundo de ontem sabiam de coisas concretas e agiam segundo paradigmas que lhes estavam embebidos no pensamento. As pessoas do mundo de hoje têm referências difusas e voláteis, vivem para o momento.
Daí que eu defenda a necessidade do robustecimento de comunidades: a família, o clã, a tribo, a freguesia, o concelho, o país. Que aliás, num mundo tão preocupado com ecologias várias, persiste em esquecer a ecologia da espécie humana que, tal como as outras espécies da Natureza, tem o seu espaço, as suas simpatias, os seus territórios.
Os anglo-saxónicos, graças a uma cultura que os individualiza e responsabiliza pessoalmente, chamam ao seu país home. A mesma palavra que para casa. Porque entendem, para além de preocupações mecânico-patrióticas, que o nosso país é o lugar de acolhimento, onde nos devemos sentir protegidos.
Ora essa noção, essa necessidade diria mesmo, anda perdida pelo nosso Portugal. Cego como sempre ao espanto perante o “estrangeiro” – a eficácia, a organização, o dinheiro, do “estrangeiro” – com o qual, como é patente, os nossos políticos querem emparelhar, para se sentirem cosmopolitas, importantes, ao lado dos “grandes”, numa atitude de que só podemos imaginar a possidónia subserviência, no esquecimento evidente da nacional piolheira, piolheira de que gabam rasteiramente o bacalhau e o vinho, enquanto bebem distraidamente o consomé que provavelmente não apreciam, não percebendo, por incultura e cegueira, o nojo aristocrático que causam a muitos desses mesmos estrangeiros que reverenciam, patente aliás na exclamação de um primeiro ministro — grosseiro — dos Países do Norte, há uns anos.
Na afirmação da individualidade e no fomento de laços, primeiro, familiares, depois restringidos à nossa comunidade próxima, fomento esse em liberdade pessoal, inserido em culturas comuns, não atirando para um Estado distante as obrigações que devem ser nossas (cuidar! Dos velhos, dos pequenos, dos famintos, dos solitários, de quem precisa…) talvez fosse possível um maior equilíbrio e paz.
E também exemplo e entendimento.