Todo o lisboeta sabe onde fica a Avenida Duque de Ávila; e eu também, desde que a invenção do GPS me habilitou a aceder com facilidade aos lugares mais recônditos.
Agora, quem foi o duque poucos saberão. E fazem muito bem porque aquele distinto nobilitado (primeiro conde, primeiro marquês e primeiro duque daquela designação – Ávila porque era o seu nome e Bolama porque desenlaçou um obscuro conflito com o Reino Unido em torno de uma ilhota guineense) teve uma carreira política brilhante, tendo sido deputado, várias vezes ministro e presidente do Conselho, além de presidente da Câmara dos Pares, mas não deixou nenhuma obra, pensamento, escrito, política, iniciativa ou realização memorável.
É lembrado unicamente por ter proibido as Conferências do Casino, umas reuniões inócuas onde o escol intelectual da sociedade portuguesa se propunha “criticar o status quo político, social e cultural português da época, as suas instituições, os seus valores, a sua visão do mundo: a Monarquia, a Igreja Católica, a Universidade de Coimbra, o sistema de ensino, o meio literário, a imprensa, o liberalismo económico e a organização social que daí advinha, e o espírito conservador, acomodado, abúlico, que caracterizava a sociedade de então”.
Aquela nata constatava a decadência e o relativo atraso do país, e queria debater os remédios. Nada, porém, oferecia de concreto, salvo um socialismo mais ou menos romântico, um republicanismo larvar, um anticlericalismo militante, a necessidade da morigeração de costumes e uma denúncia consistente dos mecanismos políticos e do pântano nacional – “choldra torpe” lhe chamou Eça via o alter ego João da Ega.
As Conferências não são lembradas pelo que de relevo lá se disse, mas porque a chamada Geração de 70 se desentranhou em homens brilhantes, entre eles Eça, o escritor que, com Camões, Camilo e Pessoa, produziu o melhor a que a literatura portuguesa já ascendeu (é a minha opinião; e quem tiver outra que se dane). Dali não seria provável que saísse qualquer projecto consistente. Nem poderia: a ideia de que um artista, seja ele escritor, músico, pintor, escultor, dançarino ou arquitecto, é depositário de alguma espécie de lucidez ou sabedoria que falha ao comum dos mortais era na altura, e é hoje, uma fantasia; e a condição de intelectual e pensador, então e agora, produz com frequência suficientes e pesporrentes. É certo que os sábios tendem a ser cultos, mas os cultos burros, não poucas vezes – não faltam exemplos nas cátedras da opinião.
Daquela geração dourada saíram republicanos, políticos da monarquia constitucional, até socialistas, e alguns que por obras valerosas da lei da morte se libertaram. O que não saiu foram soluções para o atraso: estas começariam a desenhar-se mais de meio século mais tarde, com o Estado Novo, que se ocupou primeiro da dívida, depois das infraestruturas públicas e, a seguir à II Guerra e sobretudo desde a adesão à AECL, da convergência.
O regime viria a suicidar-se com a Guerra Colonial, e estava de todo o modo exaurido: a burguesia, que entretanto crescera, queria a Europa, e esta a democracia, de modo que se finou do modo que sabemos – uma história que só agora se começa a poder contar sem demasiados sobressaltos, por as guerras do fascismo e do seu anti estarem obsoletas, em que pese a comunistas e outros die-hard.
Poder-se-ia supor que acho mal que os senhores D. Pedro V e D. Luís tivessem nobilitado o ilhéu. De modo nenhum: não partilho do generalizado desprezo por quem dedica a vida ao serviço público, nem exijo que os líderes políticos sejam pessoas de excepcional craveira, nem acho que a comunidade tenha alguma coisa a ganhar se a actividade política não tiver nenhum apelo para os melhores, e muito menos entendo que quem anda no meio tenha alguma variedade de sarna.
Com uma carreira política, se não se for desonesto, não se enriquece. E mesmo que a condução desastrada do país tenha levado a que o que alguém chamou elevador social (expressão detestável, mas não estou com vagar para escabichar outra) tenha encravado, e que portanto haja políticos que veem na carreira pública as oportunidades que não veem noutras actividades, daí não decorre que o país não deva distinguir percursos ilustres.
De mais a mais quando essas carreiras se baseiam em generalizada, permanente e reiterada aprovação, por nulo que seja o objecto da estima popular.
Pensei este texto para o nosso Primeiro Costa, que deixará em herança a maior dívida da nossa história (não conferi: sei lá como estava a dívida em 1385 ou 1834 ou 1892, mas nem por isso a alegação parece pouco verdadeira), os jovens e os talentos que emigram, a população que decresce, o Estado obeso, a impostagem opressiva, a AT inquisitorial, a comunicação social domesticada, o deslizar do país para os últimos lugares do desenvolvimento, a alienação do módico de soberania que nos resta na EU, e um longo etc.
Ia sugerir que, quando Costa fosse ocupar uma sinecura e uma datcha em Bruxelas, era justo que a República pedisse ao senhor D. Duarte que o nomeasse barão. Tinha inclusive pensado no nome: barão de Santos, indo pescar-lhe ao nome, ou de S. Sebastião da Pedreira, à naturalidade.
Mas tropecei nesta notícia, em que o Presidente da República se ocupa com ternura do destino do referido Costa, opinando com argúcia que em 2023 sairá, uma grande desgraça que de resto (isso Marcelo não diz porque é uma pessoa estóica) encara com aflição.
E fez-se luz: Comparar Costa ao duque de Ávila é um grande exagero, desde logo porque o segundo se exprimia em bom português e passava por conservador, enquanto o primeiro usa um dialecto próprio e não se sabe bem o que seja politicamente, se alguma coisa, mas de direita é que não. É certo que a graduação em barão, e não conde ou duque, já traduzia uma hierarquização, mas toda a arquitectura do raciocínio me começou a parecer forçada.
Forçada para Costa, mas que assenta como uma luva ao próprio Marcelo: A herança de Costa é uma pré-falência do regime. E ninguém jamais o encarnou, ao regime, mais completamente do que o nosso Presidente, que, ao contrário dos Vencidos da Vida, lisonjeia o ego popular enunciando-lhe as superioridades imaginárias da Situação, e o bem fundado das escolhas que faz, e das políticas e das pessoas que, com a graça de Deus, as executam.
De modo que o senhor D. Duarte decerto não se lembrou, mas alguém lhe deveria sugerir, que um título para Marcelo seria da maior justiça e oportunidade: conde de Rebelo não estaria mal.