– Sabe, doutor, isto não é consigo, mas as pessoas murmuram dos médicos.

– É que as pessoas dependem de nós, Bemis. E ninguém gosta de estar na dependência seja de quem fôr. No fim de contas, é uma tirania dupla, porque o vosso corpo é igualmente um autocrata. A Medicina é o outro.

Not as a stranger é o título original deste fascinante romance de Morton Thompson publicado em 1954.

Afortunado autor este que há quase 70 anos atrás, conseguiu publicar um livro sobre médicos, não sendo ele próprio médico.

Autores existem hoje que vêem as suas obras recusadas por não pertencerem à classe das personagens que ficcionaram.

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No entanto não é sobre estes tempos modernos de censura que quero desenvolver e tão pouco servirão estas linhas para dissertar sobre objecção de consciência. O que gostaria de partilhar aqui consigo, são reflexões pessoais sobre a consciência do que é ser médico em 2023. E faço-o definitivamente not as a stranger.

A Medicina é muito antiga. Podemos invocar Hipócrates na Grécia há 2500 anos, podemos falar de Hamurabi na Babilónia, dos papiros egípcios de Edwin Smith ou de Ebers, de há mais de 3500 anos, podemos ir para o Oriente, para a Índia e para a China e recuar ainda mais milénios atrás.

Eu cá diria que a Medicina é tão antiga quanto a Humanidade, porque a Medicina nasce do medo da morte e da compulsão para o alívio do sofrimento. A religião e as artes também vêm deste local ou algures vizinho. A grandeza e singularidade da Medicina advém precisamente da sua capacidade de materializar essa espiritualidade primordial do ser humano, numa ciência com um método objectivo e validado.

Thomas Carlyle definiu a fé como “o acto saudável do espírito humano”.

A Medicina por seu lado é a arte da cura, e pode ser definida como a ciência que actua na manutenção ou reabilitação de um corpo e espírito saudável.

E a irónica beleza desta ciência é o facto de continuar alicerçada em três dons espirituais da Humanidade: Fé, Esperança e Caridade. É assim que os médicos curam os doentes. Porque os doentes acreditam e confiam nos médicos (Fé), porque os médicos oferecem a Esperança que os doentes necessitam para se curar e porque os médicos se preocupam com os seus doentes e nutrem por eles os seus melhores sentimentos (Caridade).

As competências médicas são tradicionalmente sistematizadas em quatro grupos: clínicas, de educação, de investigação e de gestão. Na minha opinião, deveríamos acrescentar dois grupos: as competências sociais e as espirituais. Tratam-se de competências intangíveis e estão subjacentes a todas as outras. Enunciá-las oferece-lhes a relevância que merecem e levam-me à primeira reflexão:

1Sobre os critérios de selecção

Nas últimas décadas em Portugal, as provas de admissão ao curso de Medicina têm sido consistentes na discriminação positiva e selecção dos candidatos do sexo feminino. Todavia não pretendo desenvolver sobre esta disparidade nem questionar se Portugal tem de facto uma Secretaria de Estado da Igualdade ou apenas uma Secretaria de Estado pelos Direitos das Mulheres. E tão pouco vou comentar a Medicina ser um substantivo feminino.

Gostaria sim de reflectir sobre o famigerado numerus clausus. É impopular, trágico até para muitos jovens talentosos e dedicados na flor da idade, bem como para as suas famílias. Mas a injustiça que lhe é atribuída é (passo o pleonasmo) totalmente injustificada. As Faculdades de Medicina (como qualquer instituição de ensino) têm um limite de alunos que podem acolher. Pela dimensão das suas instalações e do corpo docente, e neste caso específico, pela disponibilidade de doentes para as aulas práticas.

O Direito à Saúde consta na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo 25º) e na Constituição da República Portuguesa (Artigo 64º). No entanto, no mundo real, a qualidade dos cuidados de saúde prestados não é uniforme. Por isso não basta proclamar o direito, devemos pugnar pela sua boa execução. Não é indiferente admitir 500, 1000 ou 5000 estudantes de Medicina. Não tenhamos ilusões sobre a discrepância das suas competências no dia que receberem o diploma, consoante a dimensão da amostra.

O numerus clausus é um dos assuntos mais frequentes pelos quais “as pessoas murmuram dos médicos”. Talvez o primeiro de que se servem para os acusar de corporativismo, habitualmente num tom apaixonado e hostil. Dizem que é a estratégia dos médicos para impedir a livre e legítima concorrência.

É um argumento hábil, tão válido e legítimo quanto redutor e enviesado.

Os médicos (como toda a gente) com poder de decisão política e social, geralmente ambicionam por cargos académicos e por se perpetuar no poder. Abrir novas Faculdades, Cátedras, Comissões, etc etc, seria o caminho mais curto, rápido e fácil a seguir, para satisfazer todas essas ambições. Vimos isso acontecer noutras profissões também reguladas por Ordens profissionais, e o impacto na sociedade que daí resultou.

Na minha opinião, se isso tem demorado a acontecer na Medicina, tal não se deve ao corporativismo dos médicos, antes pelo contrário. Deve-se às exigências elevadíssimas do ensino da Medicina com a qualidade que os doentes precisam.

Se formos pelo egoísmo dos médicos, não nos podemos esquecer: Os médicos também ficam doentes, e os médicos, supostamente melhor do que ninguém, sabem do que é preciso para se tratar doentes.

Na minha opinião, antes do numerus clausus, o caminho a seguir passa pela redefinição dos critérios de selecção. Mas ainda antes disso, passa pela redefinição da forma como queremos  preparar os nossos filhos para a idade adulta, para o mundo profissional e para a vida numa sociedade plural num Estado de Direito Democrático, e do papel da escola e das disciplinas que lá são leccionadas, neste processo de formação humana.

2Sobre a formação pré- e pós-graduada

“Na Medicina, em cada 10 anos 50 por cento do que pensávamos que era verdade é mentira”.

Esta eloquência nas palavras do Dr. Luís Campos, meu saudoso professor de Medicina I, é bastante para realçar a importância da formação médica contínua.

Talvez por ter estudado num colégio cujo lema é “Educar para servir”;

Talvez pela necessária humildade em exercer uma profissão fundamentada numa ciência não exacta, com noções em constante mudança e sem nunca atingir o conhecimento absoluto das coisas;

Talvez pela assumida petulância em sentir que exerço uma das profissões mais nobres da Humanidade;

Talvez por tudo isto dou tanta importância à formação contínua de um médico.

A sociedade precisa entender que o trabalho de um médico não se pode resumir à sua actividade assistencial clínica, ou seja, às horas que passa com os doentes.

A sociedade precisa entender que um médico precisa ter tempo para estudar e para se actualizar. E que esse estudo permanente é no benefício dos doentes e na maioria das vezes, com prejuízo do próprio médico e da sua família.

O Estado também precisa entender isto, não só na qualidade de entidade empregadora e financiadora, mas sobretudo como regulador de um universo fértil em conflitos de interesses. A indústria médica e farmacêutica move muito dinheiro em sociedades comerciais com fins lucrativos. Muitas delas estão cotadas em bolsa e necessitam de um crescimento económico contínuo. E paradoxalmente (ou não), muitas delas atribuem bolsas e financiam trabalhos de investigação, cuja finalidade é tornar as pessoas menos doentes e com menor necessidade de medicamentos ou dispositivos médicos.

O médico sofre do mesmo paradoxo: o seu objectivo profissional é tornar-se desnecessário, precisamente porque jurou que “a Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação”.

Por tudo isto, um discurso político sobre a carreira médica assente em escalas de urgência, exclusividade de funções numa instituição e no maniqueísmo público-privado, é absurdo e néscio. Serve apenas para propaganda estéril e distracção do essencial, sem benefício nenhum para os doentes.

3Sobre a politização da saúde

A pandemia por que passámos recentemente, expôs de forma cruel e categórica, o lugar de relevo que a Medicina ocupa na sociedade, em todo o mundo.

Marta Temido, a ministra da Saúde na altura, chegou mesmo a afirmar a importância de promover a “Soberania Médica”. No entanto, não é sobre os Órgãos de Soberania que quero desenvolver, nem sobre o facto de haver férias parlamentares e judiciais, mas não existirem férias sanitárias ou hospitalares.

Tão pouco irei questionar porque é que a sociedade entende que é dever de um jovem formado em Medicina, prestar serviço público e integrar escalas de urgência num hospital ou num centro de saúde 24h por dia, 7 dias por semana, mas ninguém espera que um jovem formado em Direito tenha o dever de prestar serviço público num órgão de soberania como seja o Parlamento ou um Tribunal. Porque se o fizesse, também teria de questionar a noção de soberania.

Estas linhas também não servirão para revisitar os momentos de má memória da História Universal em que a Medicina serviu um propósito ideológico ou político.

E parece-me bastante óbvio, sem necessidade de um pensamento muito elaborado, reconhecer que os políticos, formatados pela ambição de poder para a “tutela de pastas”, tenham pouca habilidade em saber lidar com uma classe profissional de quem dependem.

Gostaria sim de reflectir, por um lado sobre a criação de cargos desnecessários na área da Saúde, por outro sobre a ocupação de cargos técnicos por pessoas sem experiência nem competência técnica, e finalmente sobre o que entendemos, enquanto sociedade civil, que devemos aceitar que seja decidido por nomeação política.

Uma declaração de guerra, acordos diplomáticos, alianças internacionais, são decisões políticas. Activar um míssil ou resgatar uma vítima, são questões técnicas.

A construção de um aeroporto aqui, uma auto-estrada ali, ou uma linha de caminho de ferro acolá, são decisões políticas. Descolar e aterrar aviões, conduzir automóveis ou comboios, são questões técnicas.

A construção de um hospital aqui ou de um centro de saúde ali, são decisões políticas. Tratar doentes é uma questão técnica.

Por que raio é necessária confiança política na administração de um hospital? Não faz sentido nenhum, numa lógica de prestação de cuidados de saúde de excelência. Faz todo o sentido na lógica de arranjar empregos na teia de favores e promiscuidades político-partidárias.

Hoje temos indignação pela ingerência do Estado na Direcção Geral de Saúde (e outras) bem como nas Ordens profissionais. Mas será que nunca ninguém se questionou da ingerência do Estado, quando a Direcção Clínica dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que serve para representar os médicos no Conselho de Administração, deixou de ser eleita pelos próprios médicos e passou a ser designada por nomeação política?

E será que nunca ninguém questionou o contrato dos hospitais em regime de parceria público-privada?

O Estado contratava uma empresa privada para prestar os cuidados de saúde à população de determinados locais, e esse contrato estava sujeito à auditoria dos cuidados de saúde prestados por essa empresa privada. Até aqui tudo certo, mas…

… o Estado, que dispõe de uma Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), de uma Entidade Reguladora da Saúde (ERS) e de Ordens profissionais, apenas considerava válida a auditoria realizada por uma empresa privada internacional (as célebres “Joint Comissions”).

Então por quê e para quê temos uma IGAS, uma ERS e as Ordens profissionais?

Quanto à Direcção Executiva do SNS, a tentação imediata seria justificá-la numa lógica de diluição de responsabilidades para despersonalizar as decisões e facilitar a desresponsabilização política. Porém, não me sinto habilitado nem seria intelectualmente honesto, apreciar uma instituição do Estado que nem sequer tem estatutos aprovados.

4Sobre a mercantilização da saúde

Eu sou médico e não tenho clientes. E quando estou doente, não quero ser cliente de ninguém.

Quando estou doente, vou ao médico, ao farmacêutico, ao enfermeiro, ao fisioterapeuta, ou a outro técnico de diagnóstico e terapêutica.

Cliente é alguém que requer serviços mediante pagamento. É um conceito oriundo da economia, a ciência que estuda o processo de produção, distribuição, circulação e consumo dos bens e serviços. Cliente é uma tentativa de abstração e neste caso tem o efeito de despersonalização, de desumanização até. Um doente ser resumido à condição de alguém que requer serviços mediante pagamento, demonstra insensibilidade, falta de empatia e um menosprezo atroz pelo seu sofrimento.

Um enfermeiro dizer que tem clientes, é uma contradição em termos. Um enfermeiro, trata de enfermos.

Estranho hospital aquele onde os enfermeiros têm vergonha de ser enfermeiros e ambicionam uma ascensão profissional que consiste em ser doutor em gestão de empresas. Nunca vi nenhum engenheiro numa obra ter vergonha de ser chamado de engenheiro, mas já vi enfermeiros em hospitais com vergonha de ser chamados de enfermeiros.

Tenho vergonha por eles. Não entendem que tratar de enfermos é das profissões mais nobres da Humanidade. E que gerir orçamentos, encomendas e bases de dados, não tem nobreza que se lhe compare.

Deviam ler Lucas 4,5-8 (era médico por sinal).

Estranho hospital aquele onde já não existem médicos nem doentes, mas profissionais clínicos e clientes.

Repudio o conceito mercantilista de uma loja de saúde onde clientes são atendidos por profissionais clínicos. Para mim, o Hospital é o local onde uma Pessoa se dirige quando está doente e precisa de um médico, de um enfermeiro, de um fisioterapeuta, de um técnico de diagnóstico e terapêutica ou de um farmacêutico hospitalar. Qualquer tentativa de subversão desta lógica solene de relações humanas, para mim é espúria.

Imagino que um músico sinta o mesmo. Não passa pela cabeça de ninguém chamar um pianista de profissional das artes e os concertos não têm clientes, têm público, uma audiência.

Sinto algum paralelismo entre a mercantilização da saúde e a politização da mesma e convido-o à leitura de um brilhante artigo publicado no New York Times, cujo título é por demais expressivo: “O negócio da saúde consiste em explorar médicos e enfermeiros”.

O negócio da saúde é o negócio da doença. O negócio do bem-estar é o negócio do sofrimento. O negócio da quantidade e qualidade de vida é o negócio da morte. Este negócio acontece todos os dias nos hospitais. Este negócio não é um negócio qualquer e na minha opinião não pode ser encarado nem gerido como os demais.

5Sobre a inteligência artificial

É um tema tópico do momento, que tem vindo a ser invariavelmente abordado nos programas científicos dos congressos médicos.

Como diria Zeca Afonso, “Seja bem vindo quem vier por bem”.

Para os médicos, tudo aquilo que facilitar a partilha de conhecimento e servir para nos ajudar a aliviar o sofrimento e a prolongar a vida de alguém neste mundo, será bem vindo.

Para os doentes, tudo aquilo que trouxer uma luz de esperança, será uma bênção. E se chegar sob o manto da inovação tecnológica, terá um magnetismo suplementar particularmente apelativo.

Para os administradores hospitalares do SNS, é a boia de salvação para combater as listas de espera. Para os administradores hospitalares do sector privado, é a pedra filosofal que irá abater médicos da folha salarial.

No final, todas estas reflexões fazem-me sentir que há demasiados estranhos a interferir e retirar dividendos pessoais, sociais, políticos e/ou económicos da relação entre um médico e um doente.