O escritor Afonso Reis Cabral, autor dos romances O Meu Irmão (2014) e Pão de Açúcar (2019), diz que as suas obras não têm sido traduzidas para inglês e acusa uma cultura de “censura”. Esta segunda-feira, o escritor de 33 anos, laureado com os prémios Leya e José Saramago, usou as redes sociais para partilhar a resposta de uma editora norte-americana, sem nunca revelar qual, que se recusou a traduzir os seus livros.

“Não tinha pensado em divulgar a resposta que uma editora norte-americana destacada me enviou sobre a hipótese de publicar os meus romances”, começou por escrever no Facebook. “A honestidade do e-mail chega a ser tocante”, continuou, antes de transcrever o e-mail recebido: “O escritor é claramente muito talentoso, contudo. Sinto que a franqueza de O meu irmão pode ser problemática para o mercado americano, onde estes assuntos são levados muito a sério pelos média. A crítica a Pão de Açúcar foi maioritariamente boa, mas um colega meu expressou preocupações sobre uma pessoa cis escrever sobre uma pessoa trans — outro assunto altamente sensível aqui. Tentei encontrar uma pessoa LGBTQ falante de português para escrever um relatório de sensibilidade, mas não encontrei nenhum que falasse português. Por essas razões, decidi passar”.

Ao Observador, o escritor diz que “o que está muito expresso no e-mail é que a editora, tal como muitas outras, demonstra preocupação em que um homem, que se identifica como homem, escreva sobre uma mulher trans, e que portanto não tem lugar de fala para o fazer. Isto é a negação total da ficção e da literatura tal como ela é. É querer transformar a literatura no fundo num traduzir da experiência própria de vida, e isso não é aceitável. Literatura não é nada disso”. Afonso Reis Cabral considera “absurdo” que se tenha em conta “o perfil do escritor” e “se ele tem ou não lugar de fala para escrever sobre determinado assunto”.

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Para o escritor, que é trineto de Eça de Queiroz e presidente da Fundação Eça de Queiroz, “lugar de fala” é uma expressão que, na literatura, “não tem qualquer cabimento”. “Uso-a porque é a expressão usada pelos proponentes dessa teoria e uso-a por comodismo, por facilidade, para se perceber do que é que se está a falar. A expressão lugar de fala, que veio da sociologia e que talvez nesses campos pudesse fazer algum sentido, aplicada à literatura não faz qualquer sentido. Não tem qualquer cabimento. No fundo remete a literatura para a tradução da experiência própria, e não para o encontrar o outro, para fazer ficção ou arte. Que é o que a literatura é. A arte transcende a condição de quem a faz. A literatura é a transcendência da própria condição”. “Quando se vê a literatura como o contrário é um mero expressar do lugar de fala, ou melhor, da identidade de quem a escreve, estamos a entrar num ciclo absolutamente vicioso e atentatório da própria literatura”, alerta.

O romance Pão de Açúcar, que valeu a Afonso Reis Cabral o Prémio José Saramago em 2019, é inspirado na história de Gisberta Salce Júnior, mulher trans brasileira que em fevereiro de 2006 foi agredida durante vários dias e depois morta por um grupo de rapazes, com idades entre os 12 e os 16 anos, no Porto. Para o escritor, “é evidente que uma mulher trans pode escrever sobre um homem que se identifica como um homem e vice-versa”.

“Essas barreiras são completa e totalmente artificiais e têm sido impostas cada vez mais por essa hipersensibilidade e vão tornar-se cada vez mais problemáticas para a liberdade de quem escreve”, argumenta, defendendo que o autor deve ter uma “liberdade artística total”. “Um escritor deve fazer de um tema o que quiser, não precisa de ter representatividade, não precisa de pôr na boca de personagens uma determinada doxa. O escritor é perfeitamente livre para fazer o que quiser e a literatura não deve ser instrumentalizada, muito menos desta maneira”.

Segundo o escritor, a resposta negativa da editora norte-americana aconteceu há já dois anos. No mundo da tradução literária, a ausência de resposta e a recusa é um processo “normal”, garante, mas esta terá sido a primeira vez que uma recusa foi “expressa e explícita” nos motivos evocados. A partilha surge agora numa altura em que se discute a reescrita de obras de diversos autores, de Roald Dahl a Ian Fleming ou Agatha Christie, na sequência da revisão dos chamados “leitores de sensibilidade”. No caso da “Grande Dama do Crime”, as edições inglesas dos livros foram alteradas para excluir descrições físicas, referências étnicas e insultos. Cabral crê que, neste contexto, “rescrita talvez seja uma palavra simpática para censura”.

A polémica internacional serviu de pano de fundo, mas o que motivou o escritor a relatar este episódio foi um texto partilhado por Pedro Sobral, administrador executivo da Leya, durante esta segunda-feira, nas redes sociais. O responsável pela editora relatou num longo texto como Afonso Reis Cabral tem visto “a tradução dos seus livros nos Estados Unidos barrada não pela qualidade literária dos dois livros, mas por fatores secundários para não os editar”, recorda ao Observador. “Relativamente a O meu Irmão porque é um personagem com síndrome de Down que podia levantar algumas questões da sociedade americana. No caso do Pão de Açúcar porque é um homem cis a escrever sobre uma personagem transexual”, justifica.

Pedro Sobral considera que a questão não deve ser menorizada. “De repente estamos numa situação em que um autor como o Afonso Reis Cabral, ainda por cima um autor com méritos reconhecidos e com qualidade que está no topo daquilo que é literatura europeia contemporânea, não está acessível aos leitores americanos porque os seus personagens, e o próprio escritor enquanto homem está a ser julgado. Saímos daquilo que é uma avaliação literária do texto, daquilo que é o mérito ou não de uma ficção, para passarmos a julgar os personagens e o escritor. Estamos a criar uma máquina censória”, acusa.

Leitores de sensibilidade “não fazem sentido nenhum”

“Não fazem sentido absolutamente nenhum”, diz Pedro Sobral quando confrontado com a possível necessidade de leitores de sensibilidade falantes de português. “Não entendo. Como grupo editorial não entendemos porque é que é preciso uma leitura externa dessa dita sensibilidade. O que editamos são livros. Não olhamos para quem escreve. Não fazemos interrogatório sobre a visão ética, moral e política de um dado escritor ou escritora. O que nos interessa é o original que nos põem na mão”. O também presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) diz que não conhece “ninguém em Portugal que recorra a tal coisa ou que esteja a pensar em tal coisa”.

Também Afonso Reis Cabral critica a existência destes profissionais. “Não fazem qualquer sentido”, diz. “São uma espécie de censores prévios. São pessoas que leem na perspetiva meramente da sua experiência de vida. Não estamos sequer a falar de editores e de pessoas experientes na literatura. Estamos a falar de pessoas que lêem na perspetiva da sua vida, dos seus traumas ou da sua identidade”, continua.

“Expressam porque é que se sentem ofendidos com aquilo. Ora, a literatura não é feita para não ofender. A literatura não é feita para se agradar a determinadas identidades ou para se colmatar determinado trauma”, remata. O escritor teme que “o papel do leitor de sensibilidade chegue cá” e que o resultado seja “obras higienizadas e expurgadas que limitam a liberdade dos escritores.”

Ao Observador, Afonso Reis Cabral revela que no seu último livro, de não ficção, Leva-me Contigo – Portugal a Pé pela Estrada Nacional 2 (2019), aquando da tradução para inglês, “a tradutora levantou imensos problemas, imensas questões sobre linguagem”, nomeadamente “sobre falar sobre ciganos, sobre usar uma metáfora sobre raparigas e rapazes estarem na rua a gritar como índios”. “A tradutora insurgiu-se contra isso”, recorda. “É uma hipersensibilidade transversal a todo o meio literário”, acredita. Sobre o resultado final, o escritor diz que “não acompanhou a tradução”, já que foi “para o circuito turístico”. Mas julga “que [os elementos] se mantiveram com ligeiras adaptações da tradução, como é normal acontecer”.