Pelo facto de a presente exposição argumentativa corporizar uma lucubração de índole bioética, será conveniente, primeiramente, desvelar aquela que nos parece ser a mais rigorosa aceção deste termo. O vocábulo provém da união dos étimos bios e êthos; enquanto o primeiro possui o significado de “vida” (lato sensu), o segundo remete para a interioridade do sujeito, o seu caráter ou maneira de ser, o lugar de onde emerge a sua praxis. Deste modo, a bioética deve ser entendida como a disciplina que se debruça sobre a fundamentação da ação humana, justamente quando esta se relaciona com questões relativas à própria vida.
Acompanhamos, nesse sentido, a visão de Peter Singer de que “a ética não é um sistema ideal nobre na teoria, mas inútil na prática”, na medida em que “um juízo ético que seja mau na prática sofre necessariamente de um defeito teórico, porque a finalidade do juízo ético é orientar a prática”. Assim se desconstrói a ideia inverosímil de que o pensamento reflexivo se restringe a um plano meramente teórico-discursivo, não compaginável com uma dimensão atuante. Na verdade, o temerário estado em que se encontra o mundo contemporâneo, alerta-nos para a exigência de uma subordinação do saber técnico ao saber prudencial.
O colossal avanço da tecnociência é, como sabemos, um dos traços indeléveis do passado século; o mundo assistiu a uma proliferação tecnológica voraz, processo esse que se repercutiu nas mais diversas áreas, revelando uma regular e periclitante ausência de compromisso ético. Não obstante, o nosso rumo pode e deve ser diametralmente oposto. Tal como advoga o atual líder da Igreja Católica, “é possível voltar a ampliar o olhar, e a liberdade humana é capaz de limitar a técnica, orientá-la e colocá-la ao serviço doutro tipo de progresso, mais saudável, mais humano, mais social, mais integral”.
Muito por culpa das atrocidades cometidas durante a segunda guerra mundial — e designadamente devido à consciencialização das hediondas experiências perpetradas pelo nazismo —, a bioética nasceu como disciplina autónoma na década de 1970. No âmbito da bioética médica, o documento intitulado “Princípios éticos e diretrizes para a proteção dos sujeitos humanos de investigação” (“Relatório Belmont”), publicado no ano de 1978, detém, ainda hoje, uma importância vital no que diz respeito à investigação e à ação médicas. Procuraremos, de ora em diante, sublinhar os três princípios éticos aduzidos no referido documento, tentando em simultâneo articulá-los com a problemática da morte medicamente assistida. Os três princípios que constam do Relatório são: o respeito pela pessoa humana, a beneficência e a justiça.
Quanto ao primeiro princípio — o único de que nos ocuparemos no presente texto —, é necessário entender que o mesmo se encontra parcialmente ancorado no conceito de autonomia; atendendo à raiz etimológica da palavra, percecionamos que esta resulta da conglomeração de dois vocábulos gregos — auto (si próprio) e nomos (lei, agenciamento, administração). Esta incursão indica-nos, como tal, que o conceito de autonomia se prende com a capacidade de um sujeito pensar e agir por si próprio, ou seja, com a possibilidade de um sujeito agenciar as suas ações de forma livre e consciente. Tal fundamento ético, ao estabelecer o respeito pela autonomia humana, determina a subordinação de qualquer investigação ou atuação médica ao poder deliberativo do paciente. Importa ressalvar que a putativa capacidade decisória do paciente carece, como é natural, do conhecimento da informação disponível a respeito da sua situação clínica.
Com base neste enquadramento, consideremos a seguinte interrogação: um ser humano que se encontra num estado de consternação irreversível do ponto de vista clínico, manifestando de forma consciente e autónoma o desejo de pôr termo à sua vida, deve ou não ter o auxílio de um profissional de saúde para consumar tal ato? É ou não moralmente aceitável, nas circunstâncias que acabámos de descrever, conceder a uma pessoa a possibilidade de poder escolher o momento da sua morte? Em casos extremos, verificando-se uma indelével intransponibilidade do sofrimento, Peter Singer defende que a resposta a esta questão é afirmativa:
“(…) o princípio do respeito pela autonomia defende que os agentes racionais devem poder viver a sua existência em harmonia com as suas próprias decisões autónomas, livres de coerção ou de interferência; mas, se os agentes racionais escolherem autonomamente morrer, o respeito pela autonomia levar-nos-á a ajudá-los a fazer aquilo que escolheram”.
Tendemos a corroborar, uma vez mais, a posição do filósofo australiano no que a este ponto concerne. Existem, no entanto, determinados fatores exógenos que não podem ser transcurados quando falamos de eutanásia voluntária: é preciso salientar, por exemplo, que para além do inalienável direito à informação e da necessária capacidade de apreensão da mesma por parte do doente, impõe-se, outrossim, que o princípio da autonomia não seja colocado em causa por elementos externos. Porém, em termos práticos, a ideia de uma “total independentização” do paciente no momento da sua escolha poderá ser falaciosa, porquanto o mesmo não se encontra fechado sobre si próprio: o doente está inserido numa conjuntura familiar e social, pelo que tais estruturas condicionam, em maior ou menor grau, a sua ação judicativa. Esta narrativa é inúmeras vezes invocada contra a legalização da morte medicamente assistida, proclamando, os mais conservadores, que nunca podemos estar certos de que um pedido para colocar termo à vida resulta, de facto, de uma decisão livre e racional.
Na segunda parte deste ensaio — em convergência com a explicitação dos princípios éticos supramencionados —, apresentaremos alguns dos principais argumentos aduzidos pela posição liberal e pela posição conservadora, procurando, num primeiro momento, compreender a sustentação teórica de ambas, visando discernir subsequentemente as consequências práticas da sua aplicabilidade.