1 Está aí, a “nova” espiritualidade: “Cristo, sou eu”!
Ainda que a mesma venha crescendo desde há muitas décadas surge agora como o novo paradigma; ela é a marca inequívoca da autossuficiência, da autodeterminação, da soberania do Homem contemporâneo. O importante é que seja eficaz, produtivo, capacitado… já se tal é verdade, isso é pouco relevante.
Quando o Homem contemporâneo diz: “acredito em Jesus, sigo Jesus, quero Jesus”… está, frequentemente, a dizer: “acredito em mim, sigo-me a mim próprio, quero-me a mim próprio”! E porquê? Porque Cristo sou eu, sob a forma da minha plenitude. O Homem contemporâneo quer ser o centro da existência, quer ser como Deus.
O Homem não precisa, afinal, de ser salvo, não precisa de ser redimido, resgatado. A narrativa de que Jesus derramou o seu sangue pelo perdão dos nossos pecados, as cenas sangrentas da Sexta-feira Santa são um exagero, são uma metáfora, uma imagem… são para esquecer! (Há quem seleccione com facilidade algumas passagens mais “coloridas” dos evangelhos; já as páginas que falam da cruz, são rasgadas sem hesitação; é uma espécie de cristianismo “a la carte”…). O Homem será salvo, então, na medida em que ele mesmo tome consciência de que é como Cristo, de que é como Deus.
Este provocador conceito do Cristo, sou eu” é uma expressão da tendência contemporânea, gnóstica, racionalista, mesclada… denominada: “espiritualidade sim”, “religião não”. É uma realidade crescente, mesmo dentro da própria igreja católica. Erros antigos, velhas heresias (de acordo com o Papa Francisco) mas com muita actualidade, que se vêm lentamente infiltrando na igreja, esvaziando o conceito da Revelação Cristã, e substituindo-a pelo conceito da “Auto iluminação”. Ou seja, o Homem é capaz de salvar-se a si mesmo!
E é qui que estamos.
2 Mas para os católicos Deus revelou-se ao Homem; Ele “baixou” à terra, encarnou, e usou a nossa linguagem, as nossas categorias humanas e pessoais (pai, filho, irmão, homem, mulher…) para se comunicar connosco; Ele fez-se nosso interlocutor!
Depois, escolheu Doze, fez deles Apóstolos e fundou uma igreja; morreu e padeceu sob Pôncio Pilatos. E isto aconteceu na história, na Terra Santa, no ano 33. Deus não anda lá pelas nuvens, não é um absoluto, não é uma energia, um gás; não é um deus virtual! E aos Doze, chamou e disse-lhes: “Ide e pregai o evangelho, e Eu estarei sempre convosco”. A vida, a paixão, a morte e a Ressureição de Jesus Cristo é um facto, aconteceu; Deus falou connosco, Deus revelou-se!
O truque destas novas espiritualidades “modernas-líquidas”… (em vários documentos, o Papa Francisco alerta para este perigo) não será tanto o desmentir, ou rejeitar estes ensinamentos fundadores… mas sim em relativizar e esvaziar-lhes o conteúdo, dizendo que tudo é, afinal, uma linguagem simbólica, poética, figurada, emotiva; que tudo não passa de imagens e metáforas carregadas de múltiplos e variados sentidos. Quando deixamos de acreditar em Deus acreditamos, para tentar preencher o enorme vazio que existe no nosso coração, em qualquer coisa.
E é aqui que estamos!
3 Nesta perspectiva, a Revelação não se poderá entender no sentido literal da palavra, como se Deus pudesse falar e comunicar com o Homem. Não, a Revelação seria uma iluminação, um lampejo, um fulgor; seria algo que o ajudaria a descobrir o seu princípio e verdade interior, que o ajudaria encontrar-se consigo próprio, a alcançar a paz de espírito e atingir, assim, uma harmonia cósmica, absoluta (seja lá o que isso for).
O problema é que, neste caso, existiriam tantas revelações quantas as pessoas. E a Bíblia, a doutrina, a tradição da igreja serviriam, assim, para colaborar no caminho da humanidade, da misericórdia, da partilha, ajudando o indivíduo a encontrar-se consigo próprio, e a alcançar a tal harmonia universal.
Ora, se a Revelação é um processo meramente individual, subjectivo, parcial… então todas as religiões são igualmente válidas (ou inválidas). Ser Cristão, Judeu, Muculmano, Hindu, Budista… é irrelevante; é apenas uma questão de sabor; o que é verdadeiramente importante, então, é que todos bebam abundantemente deste fluido límpido e multicolor da nova espiritualidade.
Neste sincretismo religioso, nesta amálgama esotérica que constitui a nova religião do séc XXI, a meta é, paradoxalmente, chegar, então, a uma unidade, a uma fusão com o absoluto, com a totalidade.
Mas nós acreditamos em Deus, acreditamos na sua Revelação amorosa, acreditamos na sua Palavra e no Caminho que nos propõe! A Revelação é o Centro da nossa vida!
E é aqui que estamos!
4 Esvaziada do seu conteúdo essencial, desaparece, então, o coração da Revelação: é que Deus é pai! Foi isso o que nos revelou Jesus Cristo. Estas espiritualidades “líquidas” não acreditam num Deus pessoal; acreditam numa “energia cósmica”, mas não num Deus pessoal; não há um face a face amoroso, não há uma relação pessoal como no Deus-Pai de Jesus Cristo. Nesta astúcia gnóstica, é preciso ficar bem alerta! Assim:
– Para o Homem do “Cristo sou eu”, não há Deus; há uma energia, uma interiorização, uma harmonia… que nos ajuda a descobrir uma alegada verdade que já está em nós, e que nos ajuda a diluir o nosso ser nas energias cósmicas do universo (seja lá o que isso for…);
– Para o Homem do “Cristo sou eu”, não existe o Pecado; quanto muito haverá uma falta de auto-consciência individual, que uma aplicada (e bem relaxada) busca de interiorização irá a prazo resolver;
– Para o Homem do “Cristo sou eu”, não é necessário Confissão, como Sacramento de Reconciliação; quanto muito uma conversa… a partir da qual o indivíduo toma consciência das suas limitações, fragilidades, incertezas, podendo então ir crescendo no seu processo de autoconsciência e interiorização pessoais;
– Para o Homem do “Cristo sou eu”, a Oração não é um diálogo; é um monólogo. Ou seja, o que prevalece é a busca do silêncio interior (importante por si só); e em vez da luta interior, renúncia e esforço pessoal temos agora relaxamento, calma, repouso, distensão… tudo na procura, finalmente, da tal harmonia e equilíbrio interior, e foco no absoluto cósmico. Deus nos perdoe por trocarmos e vendermos, ao desbarato, o grande tesouro do Cristianismo por uma frivolidade psicológica e utilitária de autoajuda. Ou seja, esvazia-se a mística e desaparece o encontro com Deus. É dramático! E é aqui que estamos!
5 O Cristianismo contemporâneo vai ficando mole, frouxo, palavroso, conciliatório, transigente e… tedioso (e ecológico). Jesus não era um conciliador de pluralismos…
O homem não é o centro de todas as coisas;
O homem não é a medida de todas as coisas!
Contudo,
Apesar desta crise de mundanização e secularização da igreja (processo cultural de inversão de valores; ou seja, Deus deixou de estar no Centro da nossa cosmovisão para, nele, passar a estar o Homem);
Apesar de, em muitas realidades… a igreja ir deixando de ser sal para passar a ser açúcar, gomas, e coca-cola;
Apesar deste deísmo terapêutico, racionalista e utilitário, retirado fantasiosa e habilidosamente do Evangelho de Jesus Cristo;
Apesar desta espécie de burguesia espiritual mais ou menos generalizada que vai imperando em muitos ambientes católicos;
Apesar dos novos politeísmos mundanos, com tantas cores e sabores;
Apesar, como nos alertava Bento XVI, da ditadura do relativismo (primeiro, estrategicamente, invocou-se o relativismo. Após a “tomada do poder”, pelas novas ideologias dominantes… passou a falar-se da ditadura do Relativismo e da imposição de uma agenda e de um pensamento único);
Ainda assim… damos graças a Deus por termos com abundância o exemplo de inúmeros Santos dos nossos dias, de homens e mulheres extraordinários que continuam a dar extraordinários exemplos de fidelidade ao Evangelho. Que eles nos guiem e nos inspirem a colocar Cristo de volta no Cristianismo.
6 Finalmente, Jesus não morreu vítima de um AVC ou num desastre de camelos numa qualquer rua movimentada de Jerusalém. Jesus foi crucificado! Ser católico é estar, com a graça de Deus, ao lado dos desesperados, dos desapaixonados, dos marginalizados. E esta opção profundamente católica tem de ser expressão de uma certa maneira de estar na vida e não o reflexo de uma emoção, de uma energia cósmica ou de uma espiritualidade passageira. Tem, a partir da Verdade, de ser um movimento genuíno e de autenticidade, tem de se traduzir numa verdadeira missão, e não num super esquema bem montado, motivado por exuberantes e ondas de voluntariado sazonal, frequentemente de ocasião, onde se fazem montes de coisas “super giríssimas, com imenso gosto”.
Pois como nos ensinava um sábio pastor: “ o mais importante nas nossas vidas é que o mais importante, seja o mais importante”.
E é aqui que queremos estar!