Não se sabe ao certo onde nasceu, se em terras de Lafões, se em Coimbra. Foi desde muito cedo destinado pelos pais à carreira eclesiástica. Estudou Humanidades no Seminário de Coimbra, fundado por D. Paterno, junto à catedral. Partiu depois para França, completando os estudos na Universidade de Paris.

Regressado a Lafões, quis tornar-se pecúlio do Senhor – Peculiar – fundando um Mosteiro, que depois entregou à solicitude do Abade João Cirita.

D. João Peculiar, Arcebispo de Braga (arcebispado 1138-1175).

Entre os primeiros de Portugal

Foi chamado para a Sé de Coimbra, recebendo, no Cabido, a dignidade de Mestre-Escola. Associou-se a D. Tello (Arcediago do mesmo cabido); com ele e outros companheiros fez nascer, em 1131, o Mosteiro de Santa Cruz. As bênçãos do Papa Inocêncio II, para este novo instituto, chegaram a 25 de maio de 1135, através da Bula Desiderium quod.

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Depois de uma passagem por Grijó – para aí chamado pelo Abade e Cónegos desse Mosteiro, os quais pretendiam que nele se implementasse a regra de Santa Cruz de Coimbra, foi eleito bispo do Porto em 1136, diocese que governaria apenas até outubro de 1138, altura em que foi destinado à Arquidiocese de Braga.

Para receber o pálio e a confirmação como bispo de Braga, D. João Peculiar dirige-se a Roma, no ano de 1139. Esta visita do Prelado a Roma reveste-se de grande importância: realizava-se, nesse ano, o II Concílio de Latrão; na cidade eterna, D. João Peculiar conheceu S. Bernardo de Claraval, com quem partilhou ideias, amizade e (daí por diante) correspondência.

Foi Arcebispo de Braga até 1175. Com profícua atividade. Distinção merece a reformulação que fez do Cabido, assim como o cunho (não monástico) que lhe imprimiu; reuniu os bispos da sua Província; pugnou pela instrução do clero; incentivou as ordens religiosas, incluídas as Ordens Militares (do Hospital de Jerusalém e dos Templários); não descurou a Catedral, nem o Povo de Deus.

Entretanto, três outras facetas da sua vida queremos aqui realçar: a colaboração que deu a D. Afonso Henriques na fundação e consolidação da independência de Portugal; a influência que exerceu, junto da Santa Sé, em favor da nossa soberania; dentro do mesmo cunho, mas mais dentro da organização eclesiástica, a luta ingente que travou para que a Arquidiocese de Braga fosse reconhecida como metropolita e primaz das Espanhas.

Pela “grei”
Empenhou-se, D. João Peculiar, em fazer reconhecer os direitos da sua sede metropolita, qual forma de subtrair territórios ao domínio espanhol. Após negociações discretas, conseguiu do Papa Lúcio II o reconhecimento dos direitos metropolíticos bracarenses sobre os bispados de Astorga, Lugo, Mondonhedo, Vallibria, Orense, Porto, Coimbra e as cidades episcopais de Viseu, Lamego, Idanha e Britonia. Tudo isso ficou consignado na Bula Bracarensem metropolim insignem, de 1144. Os direitos metropolíticos de Braga voltariam a ser reconhecidos pelos Papa Adriano IV (em 6 de agosto de 1157) e Alexandre III (em 16 de agosto de 1163).

Mas o prelado bracarense travou uma segunda luta: negou-se a reconhecer o título e dignidade de Primaz ao Arcebispo de Toledo, desrespeitando assim uma decisão do Papa Urbano II (1088-1099) e de seus sucessores. Entendia D. João Peculiar que o reconhecimento da supremacia do prelado toledano servia à causa do país estrangeiro, mas não aos interesses autonómicos de Portugal. O rei D. Afonso VII (em 1147 ou 1148) queixou-se ao Papa Eugénio III (sucessor de Lúcio II), do comportamento do arcebispo bracarense: usurpava foros da monarquia e arrogava-se precedência – primazia – que não tinha. A resposta papal foi clara: o Arcebispo de Braga era instado a reconhecer a Primazia de Toledo, sob pena de suspensão do ofício episcopal. Por agora, D. João Peculiar, acatou. Mas por notícias posteriores sabemos que manteve resistência tenaz e prolongada às pretensões toledanas. Assim, em 1150 conflitua com o Arcebispo Raimundo de Toledo: prestou-lhe obediência, é certo; mas queixou-se dele ao Papa Eugénio III, alegando ter sido vexado. Duas bulas de 1054 (8 de abril e 19 de setembro) voltam a ameaçar com suspensão o prelado bracarense, caso não se submeta ao toledano. A questão não está ainda resolvida em 1156: o Papa Adriano IV volta a ordenar, sob pena de suspensão do ofício episcopal, que D. João Peculiar reconheça a primazia do Arcebispo de Toledo. E o mesmo fará, em 1161, o Papa Alexandre III. Entretanto, por detrás da teimosia de D. João Peculiar, há quem descubra a mão de D. Afonso Henriques…

A terceira luta pela “grei” bracarense e portuguesa leva-nos a Santiago de Compostela. Entendeu o bispo desta diocese, D. Paio Raimundo (1153-1156), colocar sob sua jurisdição quatro bispados a sul do Douro: Coimbra, Lamego, Viseu e Guarda. Teve o patrocínio da Santa Sé, representada pelo Cardeal Jacinto. Chegou a realizar-se um concílio em Valladolid, no ano de 1155, para se definir esta questão. D. João Peculiar não compareceu; fez-se, antes, representar. D. Afonso VII ficou desagradado. O Cardeal Jacinto desligou da obediência de Braga os bispados de Lamego, Coimbra e Viseu; e suspendeu o arcebispo de Braga do uso de pontificais. Mas certamente que não conseguiu suspender a vontade que Portugal tinha de se tornar independente…

Pela independência
Além da defesa dos seus direitos metropolíticos, D. João Peculiar preocupou-se com o reconhecimento da autonomia portuguesa. Queria ver Portugal a ombrear com os outros estados católicos europeus. Só à Santa Sé, Portugal deveria prestar vassalagem.

A primeira intervenção “política” do Prelado bracarense acontece em 1140, em Valdevez. As tropas dos dois primos, D. Afonso Henriques e D. Afonso VII, estão para entrar em combate. Temendo o poderio português, o Rei espanhol pede a mediação de D. João Peculiar, o qual consegue a suspensão das armas por alguns anos. Entretanto, depois dessa concórdia de Valdevez, D. Afonso Henriques vai usando o nome de Rei, ainda sem o reconhecimento da Santa Sé.

A paz entre portugueses e espanhóis documenta-se em 1143, no tratado de Zamora, onde compareceram Afonso VII, D. Afonso Henriques e o Cardeal Guido de Vicos. O espanhol reconhece ao português o título de Rei; o português concede-lhe o senhorio sobre Astorga, levando o espanhol a considerar-se “Imperador das Hespanhas”.

Entretanto, no que à independência de Portugal diz respeito, um outro acontecimento merece registo: D. João Peculiar, juntamente com o Bispo do Porto, D. Pedro Pitões, negociaram junto dos expedicionários da 2ª cruzada, convencendo-os a partirem à conquista da cidade de Lisboa. Enquanto os cruzados avançavam por terra, os bispos seguiam o mesmo rumo por mar, embarcados nas águas, também no sonho da soberania portuguesa.

Papa Alexandre III (pontificado 1159-1181).

O reconhecimento por parte da Santa Sé
Quando chegou à Sé de Braga, já há dez anos havia ocorrido a Batalha de S. Mamede, que colocou D. Afonso Henriques à frente do Condado Portucalense.

Mas isso era manifestamente pouco. Empenhou-se D. João Peculiar em fazer reconhecer, ao grande combatente lusitano, por parte da Santa Sé, o título de rei, que aliás já usava, como dissemos, depois do Tratado de Zamora (1143).

Ora é exatamente nesse ano de 1143 que D. João Peculiar colabora na redação de um texto: a carta de enfeudamento de Portugal à Santa Sé, Clavis Regni Coelorum, datada de 13 de dezembro e depositada nas mãos do legado papal, Cardeal Guido. Por ela, D. Afonso Henriques oferecia o seu reino à Igreja romana, declarava-se vassalo de S. Pedro e do Pontífice, comprometia-se – por si e pelos seus sucessores – a pagar um censo anual de quatro onças de ouro (cada onça pesa aproximadamente 29 gramas) e a não reconhecer outro domínio, eclesiástico ou secular, que não fosse o da Santa Sé.

O primeiro papa a responder ao ato de vassalagem de D. Afonso Henriques foi Lúcio II. Louvou o procedimento do nosso monarca, prometeu-lhe proteção moral e material, para ele e seus sucessores, mas dava-lhe apenas o tratamento de dux portugallensis e designava pelo nome de terra, os domínios do dux.

Na muita estrada que ainda havia a percorrer, lá vamos encontrando D. João Peculiar, partícipe das andanças diplomáticas em favor da nossa independência. Carl Erdmann, na sua obra O Papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa, dá-nos conta de sete deslocações do Prelado a Roma, para informar dos avanços da reconquista, da reestruturação dos territórios eclesiásticos reconquistados, da conquista de Lisboa, da fundação de casas religiosas, da vontade de colocar Portugal debaixo da direta proteção da Santa Sé…

Os esforços de D. João Peculiar, no que à soberania portuguesa diz respeito, não lhe deram frutos em vida terrena. Mas a semente depressa desabrocharia: quatro anos após a sua morte, o Papa Alexandre III publica a Bula Manifestis Probatum, confirmando o reino de Portugal e a dignidade de rei a D. Afonso Henriques.

Assim reza o texto:

“Sabemos por evidentes sucessos que como bom filho e príncipe católico tendes feito vários serviços à Sacrossanta Igreja, vossa mãe, destruindo valorosamente os inimigos do nome cristão, dilatando a fé católica por muitos trabalhos de guerra e em empresas militares […].

Por isso nós concedemos à tua excelência e autoridade, a confirmamos por autoridade apostólica o Reino de Portugal com a integridade das honras e a dignidade de Rei que aos reis pertence”.

Objetivo conseguido: Portugal tornara-se reino independente. Acabara de nascer um novo reino e um novo rei!

[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]