Levantou-se nos últimos dias um grande sururu de indignação, pelo facto de o Governo ainda não ter feito a regulação da lei da morte a pedido. Os suspeitos do costume, que há 20 anos se dedicam a ser a “sociedade civil” das causas fraturantes (suponho que até já haja um ficheiro com a sua assinatura digital para cada vez que se lembram de fazer uma carta aberta), vieram clamar pela regulamentação da lei.
A deputada Isabel Moreira e a agora eurodeputada Catarina Martins, à boleia deste clamor da “sociedade” (que no fundo são os seus companheiros de salão) desdobraram-se em declarações, a afirmar que era urgente regulamentar esta lei, que a lei tinha sido muito escrutinada e que o Tribunal Constitucional até já se tinha pronunciado sobre ela.
Confesso que fico sempre espantado pela falta de vergonha de alguma gente, que faz declarações públicas sem qualquer pudor, como se as pessoas não tivessem memória. Ao contrário do que Isabel Moreira pensa, as pessoas lembram-se de que esta lei foi aprovada em maio de 2023 e o PS foi governo até março de 2024. Ou seja, o PS teve mais de dez meses para fazer a regulamentação da lei, não o fez, e Isabel Moreira e seus amigos nunca sentiram qualquer urgência em exigir que o fizesse. Mas aquilo que durante dez meses não era urgente, passou a prioridade nacional em menos de seis meses de governo da AD.
Mas esta mudança de coração resume bem a posição do PS e do Bloco sobre a eutanásia desde o princípio: um paliativo para que o país ignorasse as dores da governação da esquerda. Isabel Moreira bem sabe que, enquanto discutimos a morte de quem sofre, não se fala da ausência de cuidados paliativos, das urgências fechadas, das cirurgias adiadas, enfim, não se fala do estado terminal em que o PS deixou o Sistema Nacional de Saúde. Para a esquerda, a morte a pedido sempre foi uma bandeira útil para distrair o país do caos da sua governação.
Mas a falta de vergonha não se fica por aí. Diz a deputada socialista e os seus amigos (que repetem sempre os mesmos mantras), que a lei já foi muito escrutinada e que as pessoas esperam por ela. Ora, é espantoso que agora se lembrem das pessoas, quando não só se recusaram sempre debater o tema em campanha eleitoral, como ainda rejeitaram o pedido de referendo assinado por mais de 95 mil pessoas (que por não serem notáveis, não mereceram da parte de Isabel Moreira, Catarina Martins e seus amigos, mais do que insultos). Mas pior ainda, é verdade que a lei foi escrutinada, já que foi apresentada mais de cinco vezes no Parlamento. Mas é preciso lembrar que o Partido Socialista, o Bloco e a IL recusaram os pedidos de audiência de várias associações (alegando que já tinham sido ouvida outras), mas sobretudo, que os pareceres obrigatórios das Ordens Profissionais e do CNECV foram sempre negativos. A lei foi escrutinada e rejeitada pelos especialistas.
Se eu apresentasse uma lei que teve a oposição das Ordens dos Médicos, dos Advogados, dos Enfermeiros, do CNECV, da Associação Nacional de Cuidados Paliativos, da esmagadora maioria dos catedráticos de Direito Público, de todos os Bastonários dos Médicos vivos, e de um enorme conjunto de associações e personalidades, teria um pouco de vergonha antes de falar em escrutínio. A lei foi escrutinada e os deputados rejeitaram esse escrutínio!
Mas a maior falta de vergonha é quando os apoiantes da eutanásia dizem, com ar sério, sem se rir, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou duas vezes sobre o assunto. Esquecem-se é de acrescentar que das duas vezes o TC declarou a lei inconstitucional! O que aliás explica que os “notáveis” não queiram agora voltar a esperar pelo TC.
Desde o princípio deste processo que fica claro que estamos diante de um acto de despotismo de alguns deputados, que ignoram a vontade popular, os especialistas e até o próprio Tribunal Constitucional, para impor a sua vontade ao país. Em qualquer nação civilizada, uma lei que teve o parecer contrário de todos os especialistas e que foi chumbada duas vezes pelo Tribunal Constitucional, estaria enterrada. Em Portugal, pela birra do PS, do Bloco e da IL, é tratada como uma urgência.
É preciso de facto muito pouca-vergonha, sobretudo daqueles que têm ou tiveram responsabilidades governativas, para falar da urgência em regulamentar a morte assistida, quando mais de 75% dos que precisam de cuidados paliativos não têm acesso a eles, quando se morre à espera de cirurgias e tratamentos e quando os cuidadores continuam sem condições para cuidar.
Melhor faria Isabel Moreira se, em vez de vir usar a morte dos que sofrem como arma política, fizesse alguma coisa para garantir cuidados a quem sofre. Mas para isso era preciso que ganhasse alguma vergonha na cara.
Jurista