Um dos momentos, agora talvez mais esquecido, do processo educativo a norte do país passa pela experiência de visitar os castros, e que é especialmente relevante como tentativa de manter viva a memória coletiva da nossa história. Temos castros em praticamente todos os concelhos minhotos (o Alto Minho oferece mesmo uma rota dos castros) e, conforme vamos descendo no mapa, encontramos povoados maiores, como a Citânia de Briteiros, entre Braga e Guimarães, ou a Cividade de Terroso, na Póvoa de Varzim. Em bom rigor, estas referências geográficas perdem sentido quando pensamos a partir da cultura castreja, que elimina fronteiras tanto a sul, como a norte: é precisamente o que os Sangre Cavallum nos recordam, quando cantam, no seu neofolk das tradições, que o Minho não é uma fronteira.

E o que descobrimos quando procuramos essa Galécia antiga, entre as ruínas de povoados fortificados? Como revela, no seu extenso trabalho, Armando Coelho da Silva, encontramos semelhanças e diferenças. Pensemos, a título de exemplo, na família. Apesar de se tratar de uma cultura fortemente comunitária, os dados arqueológicos permitem dar razão a Aristóteles: a família constituía a base da organização social. A vida castreja assentava em unidades familiares que se organizavam em espaços independentes (até com portões e fechaduras, como se descobriu na Cividade de Terroso), com alguns edifícios (geralmente circulares) a dispor-se em torno de um pátio que acolhia a vida comum.

Esta unidade familiar apresentava, contudo, uma estrutura diferente da nossa – sobretudo se pensarmos nos últimos 100 anos. Podia ser composta, dependendo do tamanho dos castros, por cerca de 30 pessoas, o que implica um entendimento alargado de família e cobrindo várias gerações. Significaria, certamente, um entendimento partilhado de obrigações e cuidados – uma entreajuda que hoje se tornou menos comum –, mas que teria, também certamente, um preço a pagar: a inexistência daquilo a que nós, filhos da modernidade, chamamos intimidade. A organização espacial é disso reveladora: hoje estruturamos as nossas casas a partir de divisórias pessoais, com portas no interior e cortinas para o exterior, e é-nos difícil imaginar que pudéssemos partilhar continuamente os espaços, fosse para comer, dormir ou trabalhar, sem a privacidade de um espaço próprio para momentos que hoje consideramos íntimos.

É verdade que isso ainda pode acontecer atualmente entre nós em situações de pobreza, e é possível que elementos das gerações mais velhas (e, provavelmente, mais rurais) se recordem de uma infância nestes termos. Mas não é essa a regra num mundo que foi desenhado por uma modernidade centrada no indivíduo e nessa ideia tão kantiana de autonomia. Como filhos da modernidade, aprendemos a valorizar a autonomia e a autossubsistência, que constituiriam o âmago de uma vida humana digna e relegariam a infância e a velhice incapacitante para uma condição humana inferior, como estágios que nos tornam dependentes dos outros. (Talvez seja com o objetivo de evitar esse estado de dependência que parecemos entregar mais facilmente ao estado, impessoal, esse cuidado – como se isso nos permitisse manter alguma dignidade.)

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É porque somos filhos da modernidade que receamos envelhecer; afinal, perder a autonomia significaria perder, gradualmente, a própria dignidade. Mas é também porque somos filhos da modernidade que receamos a doença grave, uma condição que nos relega para um estado de dependência e de falta de controlo sobre o próprio corpo, em que não só nos tornamos dependentes dos outros, como perdemos o direito à intimidade: médicos e familiares perguntam pelo sono, dores, fezes e urina, mantendo a todo o momento um relatório da vida do doente. Fazem-no uns por cuidado profissional, outros por amor, mas, porque somos filhos da modernidade, sentimos perder ali a nossa dignidade e receamos os passos seguintes – sobretudo, aquele que as palavras do Rei Lear imortalizaram:

“O, let me not be mad, not mad, sweet heaven!
Keep me in temper. I would not be mad!”

Talvez seja por essa razão que um dos temas que melhor permite pensar sobre a condição dos nossos tempos é aquilo que convencionamos designar por eutanásia ou morte assistida. Não se trata de um tema fácil de discutir, como o texto de Maria Filomena Mónica demonstra, em particular quando é apresentado “como um direito” e se quer encerrar assim a discussão. E não é fácil porque, no seu âmago, reside a própria condição moderna – e é por isso que tantas pessoas, mesmo considerando-se espiritualmente religiosas ou politicamente conservadoras, se sentem menos seguras quando o abordam. Afinal, como diz Elizabeth Strout num dos seus livros,

“Nunca devíamos encarar de ânimo leve a solidão que as pessoas sentiam no seu âmago, que as escolhas que faziam para evitarem essa escuridão escancarada eram escolhas que exigiam respeito.”

O que se está disposto a aceitar para evitar a dor, a solidão ou aquilo que percecionamos como a perda de dignidade é, provavelmente, a decisão mais íntima de todas e merece respeito. Mas diz mais sobre o nosso tempo, que perceciona todos os momentos da vida como uma questão individual e de autonomia, do que da possível decisão, tão dolorosa, da pessoa em concreto. E é por isso que a discussão não está encerrada: pensar sobre ela é pensar sobre a nossa forma de ver o mundo e o modo como nos organizamos socialmente e ganhamos muito pouco se a percecionarmos apenas como um direito pessoal.