Foi publicada, no passado dia 21 de Julho, a Lei nº 26/2020, que transpõe, para a ordem jurídica nacional, a Directiva (UE) 2018/822 (carinhosamente, a DAC6). O que a União Europeia (UE) pretende com a DAC6 é a implementação de um regime de comunicação obrigatória, às Autoridades Tributárias, de informação sobre mecanismos de planeamento fiscal intra-comunitário potencialmente agressivo, em conformidade com as linhas da Acção 12 do projecto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) da OCDE.

Sucede que, como há algum tempo tive oportunidade de esclarecer (aqui – https://www.publico.pt/2017/05/04/economia/opiniao/sobre-o-planeamento-fiscal-abusivo-resposta-a-ana-gomes-1770657), o dever de comunicação de esquemas de elisão fiscal à Autoridade Tributária (AT) já existia na nossa ordem jurídica (DL 29/2008) e era letra morta, por ser de escassa utilidade num sistema em que a AT tem bastos instrumentos legais para corrigir actuações ilícitas ou abusivas, e em que a AT, inclusive, é o agente maior das alterações legislativas em sede tributária, conformando a lei à sua medida sempre que os tribunais não autorizam que a mesma vá ao encontro do que lhe convém. Numa palavra: não serve para nada num sistema em que a AT quer, pode e manda; foi uma medida publicitária que morreu à nascença, e à qual, na comunidade do direito, todos lhe demos a devida importância, ou seja, nenhuma.

Todavia, como diria um ilustre ministro, “agora a música é outra”, porque a nova lei procede de uma Directiva Comunitária e destina-se (em primeira linha – já lá vamos) a esquemas que envolvam mais do que uma jurisdição. Assim, seja porque as coimas são absurdamente elevadas, seja porque (mais importante) os agentes de outras jurisdições, se e quando cumprirem, alertarão as autoridades para a intervenção de intermediários (é esta a terminologia) nacionais, antecipa-se algum grau de cumprimento. Assim, e nessa medida, pode haver alguma consequência prática no que respeita ao combate à elisão ou evitação fiscal (que não à evasão, pois essa é crime e ninguém que a pratique vai fazer qualquer comunicação, como é bom de ver…).

Ora, acontece que Portugal tem a má tradição de transpor as Directivas Comunitárias indo sistematicamente além da troika. Com efeito, quando a Directiva dá margem de manobra aos Estados (e mesmo quando não a dá), Portugal faz muitas vezes gala em impor as soluções mais rígidas e menos amigas dos cidadãos e das empresas. Não sei a que se deve esta patetice fundamentalista, quiçá ao facto de os autores dos diplomas de transposição serem desligados da vida real, daquela que cria riqueza fora dos Gabinetes do poder.

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Em relação ao texto da DAC6, aponto duas novidades lusitanas:

  • Violação do dever de sigilo profissional do Advogado;
  • Alargamento das regras da Directiva às operações internas.

Violação do dever de sigilo profissional do Advogado

A DAC6 aconselha, no seu preâmbulo, a que, quando esteja em causa o sigilo profissional, o dever de comunicação se transfira para o contribuinte; mais admite, no seu artº 8-AB, que os Estados tomem as medidas necessárias para dispensar os intermediários da apresentação de informações se a obrigação de apresentação de informações violar um dever de sigilo profissional legalmente protegido ao abrigo do direito nacional desse Estado-Membro. Ora, o sigilo profissional do Advogado cai nesta previsão, e muitos Estados da UE respeitaram esse sigilo.

Já em Portugal, pretende-se que o cumprimento dos deveres de comunicação prevaleça sobre o sigilo profissional do Advogado, não podendo o mesmo ser invocado quando o cliente não cumpra o dever de comunicação. Para tanto, inventou-se (!) o seguinte estratagema: caso o intermediário seja um Advogado, o dever de comunicação é do cliente; mas se o cliente não o cumprir num dado prazo, o dever de comunicação à AT transfere-se para o Advogado. Vai, inclusive, mais além, estabelecendo um regime idêntico para o sigilo de fonte contratual – tudo coisas que na Directiva não se vislumbram e cujo objectivo passará por equiparar os Advogados às consultoras (!!!) e, assim, criar um putativo level playing field.

Extraordinário!

Só que este conjunto de regras gizadas pelo legislador surge (e peço desculpa pela rudeza) manhoso, estúpido e perigoso, por ostensivamente atentatório do Estado de Direito Democrático. É que

  • o sigilo profissional dos Advogados não é o mesmo que o sigilo contratual de uma consultora,
  • e, sobretudo, o sigilo profissional dos Advogados não foi estabelecido em benefício do Advogado ou dos seus clientes, mas por ser um pilar fundamental do sistema de justiça de qualquer Estado que preze a liberdade.

Nas palavras do meu distinto Colega José Mário Ferreira de Almeida: “O segredo profissional é a blindagem normativa, a garantia legal inamovível contra as tentativas de se obter confissão por interposta pessoa e contra a violação do direito à intimidade. É a garantia de existência de uma advocacia que, para ser autêntica, tem de ser livre e independente.”

Mais: faz algum sentido que, no âmbito do combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, o Advogado seja obrigado a respeitar o sigilo (informa o Bastonário em caso de suspeita) mas que, para defesa da receita fiscal, passe a ser obrigado a “chibar” os seus clientes à AT? Mas que ordem de prioridades é esta, de acordo com a qual defender a receita fiscal é coisa mais importante do que combater o crime e o terrorismo?

Calhava que quem inventou esta engenhosa artimanha tivesse ponderado, um pouco que fosse, antes de, em nome da devassa e da cobrança fiscal, se atirar como cão a osso aos direitos fundamentais dos cidadãos. Mais uma vez se constata que os escritos de Orwell, para algumas cabecinhas, não são um aviso, mas um manual de instruções…

Alargamento das regras às operações internas

Também na transposição da DAC6 o Governo mais uma vez aproveita uma norma europeia, que visa operações intra-comunitárias, para alargar a rede de informações que, paulatinamente, vai recolhendo sobre os cidadãos e a sua vida privada.

Foi assim com a Lei nº 17/2019, de 14 de Fevereiro, que, a pretexto da transposição das normas comunitárias relativas à cooperação administrativa e troca automática de informações obrigatória no domínio da fiscalidade, veio criar um regime de comunicação obrigatória à AT de informações relativas a contas financeiras cujos titulares ou beneficiários sejam residentes em território nacional – a famosa regra dos € 50.000,00.

Mais uma vez, agora no que respeita ao dever de comunicação de esquemas de planeamento fiscal, o Governo aproveita a “deixa” e cria um dever ex novo, decalcado do regime comunitário e que, supostamente, vem substituir o nado-morto regime do DL 29/2008. Ou seja, aproveita-se a transposição de um regime comunitário, para aplicação transfronteiriça e que visa combater a passagem de resultados tributáveis entre jurisdições, para (tentar) recolher informação exclusivamente interna, dando-se, a pretexto de coisa nenhuma, mais uma machadada no direito à privacidade e à livre gestão. Será talvez por esta razão que o Sr. Presidente da República, na nota de promulgação, duvida da bondade desta medida, uma vez que, caso seja aplicada, cria ainda mais custos de contexto aos cidadãos e às empresas – os quais inexistem, neste particular, na maior parte dos Estados da UE.

Muito mais se poderia dizer sobre a lei, pois a transposição da Directiva tem sido, nos diversos Estados da UE, tudo menos pacífica; encontra-se pejada de normas complexas e de conceitos vagos e indeterminados, ao ponto de alguns defenderem que até a simples aplicação de uma regra de não sujeição ou de um benefício fiscal fica sujeita a comunicação. Por outras palavras, há por cá quem entenda que mesmo o simples cumprimento da lei terá de ser comunicado, desde que daí resulte um desvio à tributação-regra — o que revelará, afinal, a verdadeira intenção do nosso legislador: controlar tudo o que mexa.

Mas o que verdadeiramente preocupa e importa, de um ponto de vista lusitano, é o facto de estarmos perante a criação de mais uma ferramenta que permitirá à AT, se a deixarmos com o freio nos dentes, devassar ainda mais os comportamentos dos cidadãos e das empresas e, como brinde, tentar garimpar mais receita. Mesmo que, para tanto, sejam atropelados princípios constitucionais básicos.

Lamenta-se, pois, que as dúvidas do Sr. Presidente da República, manifestadas aquando da promulgação da lei, não o tivessem levado a exigir ao Governo um pouco mais de tino e moderação; ter-se-ia seguramente evitado a tempestade de disparate que se anuncia.

Porque não o fez? Não tenho ideia, mas atrevo-me a sugerir que, mesmo ao mais ilustre dos constitucionalistas, pode faltar a sensibilidade de um Advogado para ousar a defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos. Ousadia que, estou seguro, não faltará aos meus colegas.