1 O Chile enfrenta problemas relativos a fraca pluviosidade há mais de uma década. Essa década tem permitido aos chilenos sorverem as suas reservas de água, havendo estimativas de quebra nos últimos 30 anos entre 10% e 37%, podendo chegar a 50%, no norte e centro do país até 2060. Para inverter a situação, o Chile anunciou há uns meses uma estratégia de racionamento de água que, mediante alguns alertas, permite agravar as medidas restritivas consoante as necessidades. Este texto não vai analisar as ideias chilenas de mitigação da seca extrema que subsiste há mais de uma década, preferindo olhar para a proposta constitucional chilena e perceber como a partir dela encontramos um programa que nos pode ser útil.

A proposta de Constituição Política da República do Chile, de 2022, introduz dois direitos muito relevantes explicáveis, creio, pela realidade chilena acima descrita. São eles, o Direito à Cidade e ao Território do artigo 52.º, e o Direito à Água e ao Saneamento, constantes do artigo 57.º da proposta.

2 O Direito à Cidade e ao Território do artigo 52.º começa desde logo no n.º 1 por referir que se trata de um direito coletivo orientado para o bem comum e que se basta com o pleno exercício dos direitos humanos no território assentes na sua gestão democrática e na função social e ecológica da propriedade. O n.º 2 estabelece que todos têm o direito de habitar, produzir e disfrutar livremente da cidade em condições que permitam uma vida digna. O n.º 3 acomete ao Estado o dever de ordenar, planificar, gerir as cidades e estabelecer regras de acordo com o interesse público, a equidade territorial, a sustentabilidade e acesso universal à cidade. Nos números 4 e 5, a proposta refere que o Estado garante os serviços básicos, a mobilidade, a política habitacional participada e apoia a gestão comunitária dos habitats.

Por seu turno, no artigo 57.º do direito à água e ao saneamento, a proposta estabelece que o Estado deve garantir o acesso aos dois direitos mediante o respeito pela solidariedade intergeracional, assumindo o respeito pelas especificidades das pessoas e dos seus diversos contextos, sendo certo que o conteúdo do Direito é aquele que já se encontra sedimentado na experiência internacional.

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Não é novidade para ninguém que, entre nós, muitos dos problemas associados à gestão da floresta e do material combustível se prende, por um lado, com a ausência de limpeza e cuidado das matas e, por outro, com uma intensa desertificação do território que, juntando às secas cada vez mais severas e prolongadas e às temperaturas cada vez mais elevadas, devem promover o repensar do nosso modelo de desenvolvimento, do país a várias velocidades, e do ordenamento do território típicos do século passado.

3 Repensar a cidade é repensar o território como um todo, é saber que os espaços verdes e os campos verdejantes se conseguem com políticas que permitam o respeito pelos ecossistemas de cada local, garantindo que no interior se fixam pessoas, e que no litoral não se matam ecossistemas para controlar a intensa densidade populacional. É garantir que ir de Vila Pouca de Aguiar – terra com um lugar muito especial no meu coração – a qualquer parte do país é tão simples como ir de Lisboa a Madrid. É garantir que as crianças de Vila Pouca de Aguiar, não precisam de sair da sua terra, de ao pé dos seus pais para almejarem um futuro melhor e alcançarem os empregos que desejam. É garantir uma mobilidade verde na cidade do litoral e na cidade do interior.

Não se trata, apenas, de garantir que a arquitetura das cidades permite o respeito pelos recursos, mas sim de olhar para o território como um todo. Viver no interior não pode ser uma sentença, assim como exigir a limpeza de matas não pode funcionar acriticamente, sabendo que muitos dos seus proprietários têm pequenos terrenos que não lhes permitem o acesso aos meios financeiros adequados a contratar quem faça esse trabalho que a sua saúde não lhes permite fazer

No Chile começou a pensar-se a cidade e o território a partir da Constituição, e essa pode ser também uma função bonita do Direito Constitucional, mas entre nós tem de se repensar o modelo de desenvolvimento local, a cidade, a mobilidade e integridade do território como um todo, sendo certo que o PRR e os vários quadros comunitários têm de funcionar como a alavanca funcional que permite ao interior, por exemplo à Praça Camilo Castelo Branco de Vila Pouca de Aguiar, não ser uma realidade desconhecida no Terreiro do Paço que, de quando em vez, lá se lembra que o País não gira, nem pode girar, em torno de Lisboa e do Porto.