A Itália, nação antiga, mas Estado recente, é uma terra de grande criatividade e originalidade política. Não falando da História de Roma, da República ao Principado, nem do papel chave de Maquiavel como pioneiro da “ciência de Estado” e pensando apenas na modernidade, no século XX, é impressionante o contributo italiano, de um extremo ao outro do leque ideológico, na inovação teórica e institucional.
É um italiano, Benito Mussolini, que cria o fascismo, uma tentativa de síntese entre as duas ideologias fortes do século XIX – o nacionalismo e o socialismo; como é um italiano, Antonio Gramsci, que faz uma revisão do marxismo-leninismo, em termos de hegemonia cultural, como estratégia para a conquista do poder nas sociedades modernas; são também italianos Benedetto Croce, um fino teorizador do historicismo e do liberalismo, e Giovani Gentile, que aprofundou a construção do Estado fascista na linha do idealismo hegeliano; e, mais recentemente, é ainda um italiano, Antonio Negri, a teorizar uma contestação da globalização capitalista de uma perspectiva marxista.
No pós-guerra, depois do vinténio fascista, dominado pelo anti-fascismo, a primazia do espírito criativo e crítico dos italianos manteve-se, não só na política – onde permaneceu um leque do pensamento e alternativa –, como noutras artes. Tal como os grandes mestres do Renascimento, de Miguel Ângelo a Leonardo, tinham dominado a pintura e a escultura, Visconti, Fellini, De Sica, Rossellini dominariam a sétima arte – o cinema.
O artífice da direita unida
A originalidade política italiana voltou a ser falada esta semana com a morte de Silvio Berlusconi. Talvez a única característica que o aproxime de Miguel Ângelo, Leonardo, Visconti, Fellini, De Sica ou Rosselini, seja a de ter sido ambém, ao seu modo e ao seu estilo, um pioneiro. Foi, pelo menos, uma personalidade originalíssima, cujo sucesso nos pode ajudar a entender, pelas melhores e pelas piores razões, o mundo em que vivemos.
Berlusconi é um fenómeno da pós-modernidade: um self-made-man que fez fortuna no imobiliário e comprou uma posição forte nos media, com a Mediaset e o Canale 5, e no desporto-rei, com a Associazione Calcio Milan. Depois, quase aos 60 anos, em 1994, iniciou uma carreira política que ocupou a última etapa da sua vida.
Berlusconi, il Cavaliere, como também era conhecido, marcou decisivamente a história da Segunda República italiana, a que começou no interregno de 1992-1994, quando os escândalos do Tangentopoli destruíram a credibilidade dos grandes partidos sistémicos italianos – da Democracia Cristã ao Partido Comunista. Só essa terra queimada pode explicar o sucesso das novas forças emergentes, que iriam compor, à direita, o trio ou o terceto que hoje governa a Itália.
Na “extrema-direita”, os neo-fascistas ou pós-fascistas do antigo MSI (Movimento Sociale Italiano), excluídos da respeitabilidade democrática e relegados para uma votação relativamente marginal, mas fiel, de cerca de dois milhões de eleitores, não tinham sido atingidos pelo descrédito que caíra sobre os partidos de um sistema a que não pertenciam. Giorgio Almirante, que, a partir de 1972, fora por muitos anos o Secretário-Geral do MSI-DN (Destra Nazionale) tivera como sucessor Gianfranco Fini, que passaria o Destra Nazionale a Alleanza Nazionale e procederia a uma renovação da linguagem e da estratégia do partido, tornando-o mais integrável no novo ciclo político do país. Ao lado da Alleanza Nazionale, apareceu um novo partido, a Legha Nord, uma força política nascida da velha oposição Norte-Sul.
Desde a unificação, feita pelo reino de Piemonte-Sardenha e pelos Sabóia, que a dicotomia Norte-Sul, a chamada “questão meridional”, dominara, dividira e acicatara os ânimos em Itália. A ideia era que o Norte, sobretudo Milão e as cidades da Padânia, o Norte industrial, empreendedor, activo, sustentava e alimentava um Sul ocioso, contemplativo, que vivia dos subsídios fiscais distribuídos por Roma. A Liga, inicialmente, era separatista, e o seu fundador, Umberto Bossi, tinha um discurso identitário, que apelava à secessão. O partido andava então pelos 8,5% em termos de percentagem eleitoral nacional.
Foi neste quadro que, em 1994, Berlusconi fundou a Forza Italia, um partido que aparece inicialmente como conservador em valores políticos – nacionais e familiares – e liberal em economia. Nas eleições parlamentares de 1994, a grande surpresa seria precisamente o resultado da Forza Italia de Berlusconi, que ficaria em primeiro lugar com 21% dos votos. A Alleanza Nazionale de Fini, com 13,5%, ficara em terceiro lugar e a Legha tivera 8,5%. A soma dos três partidos dava 340 deputados, isto é, maioria absoluta num colégio parlamentar de 630. Na oposição ficava a coligação progressista de Achille Occhetto, reunindo comunistas, socialistas e a esquerda da antiga Democracia Cristã.
Foi assim que, em 1994, Berlusconi entrou em força na política italiana. Tinha-se dado, entretanto, uma reforma eleitoral importante que introduzira um sistema misto – em que a maioria dos deputados (75%, o equivalente a 475 lugares no Parlamento) passava a ser eleita pelo sistema maioritário unipessoal, e os restantes 155 pelo sistema proporcional. Era a chamada “Lei Mattarella”, aprovada por referendo em Abril de 1993. Mas o mérito de juntar os nacionalistas da NA, os separatistas da Legha e a Forza Italia numa coligação inédita foi do líder do partido mais votado, Silvio Berlusconi, que chefiaria o governo em 1994 e 1995, de 2001 a 2006 e, finalmente, de 2008 a 2011. A seguir a Mussolini, Berlusconi seria o político a estar durante mais tempo à frente do Executivo de Roma.
Pai do neo-populismo?
O que é que explica o sucesso deste italiano de língua e costumes soltos com uma fortuna colossal e um grande império mediático? Como se explica que tenha sido ele o porta-voz, o protagonista, ou mesmo o inventor de uma nova “política ao gosto popular”, num país, entretanto, altamente sofisticado?
Talvez o explique o facto de o novo líder ser pouco “ideológico”, de ter feito uma carreira nos negócios e na comunicação, conseguindo identificar-se com “o homem da rua” e com o “país real”, até pela forma franca e quase ostentatória com que exibia excessos, defeitos e pecados, longe das dissimulações e hipocrisias da “política” e dos “políticos”. Terá Berlusconi inaugurado um novo tipo de liderança? Terá sido ele o precursor dos populistas à Trump ou à Bolsonaro?
O facto de estes líderes improváveis do “povo da Direita” não serem fruto de uma conspiração contra a democracia, de não serem uma causa, mas, antes, uma consequência, explica também o seu sucesso. Assumindo-se sem rodeios, souberam opôr-se frontalmente ao que os eleitores achavam então os males maiores: “políticos do sistema”, como Hillary Clinton, encarnação do liberal chic, numa América onde as classes trabalhadoras e as classes médias empobreciam com a globalização; ou como Lula da Silva, num Brasil de hipocrisia, retórica de esquerda e corrupção; ou como numa Itália que, sob uma oratória “anti-fascista” e respeitável, se achava afogada na corrupção das negociatas eleitorais.
Os eleitores de direita – patriotas e religiosos –, confrontados com o globalismo e com o multiculturalismo desordenados, com os excessos culturais e experimentais da Nova Esquerda e com a cedência resignada ou rendida das elites tradicionais, mais respeitáveis ou mais sofisticadas, aos novos delírios anti-Vida, anti-Nação, anti-Religião e até anti-Liberdade das esquerdas, foram optando por líderes que achavam mais eficazes na defesa das suas causas. Líderes a quem desculpavam tudo ou quase tudo: a libertinagem, o exibicionismo, o aventureirismo empresarial e até a agressividade brutal e por vezes boçal – tudo era melhor que a palavrosa e danosa hipocrisia reinante.
Não estando ainda em tempo de sínteses, mas de antíteses, estes políticos, ditos populistas, encarnaram o uomo qualunque evocado no pós-guerra pelo jornal e o movimento de Guglielmo Giannini. Berlusconi era o porta-voz desse “homem da rua”, capaz de dizer sem rodeios o que tinha de ser dito e de se opor ao que lhe era apresentado como respeitável, desejável, culto, civilizado. E o que lhe era assim apresentado, a ele e aos italianos, eram os dogmas com que a Esquerda – imbuída de uma pseudo-superioridade intelectual e moral – conseguira intimidar as velhas direitas, presas por preconceitos passadistas ou complexos de inferioridade.
Recep Erdogan, Boris Johnson, Victor Orban, entram, diferentemente, nesta galeria. Mas Donald Trump e Jair Bolsonaro são os mais ostensivos, também pela dimensão dos seus países e pelo caracter inesperado das suas vitórias.
O mais interessante da herança de Berlusconi – que, como Donald Trump, conseguiu reunir o ódio das várias esquerdas e centros sistémicos – foi ter aberto caminho para Giorgia Meloni, uma jovem militante dos pós-fascistas do MSI-DN-AN, que foi ministra da Juventude do seu segundo governo e que, numa dezena de anos, conseguiria fazer dos seus Fratelli o primeiro partido da Itália.
Nos antípodas do estilo e do perfil do velho sátiro Silvio Berlusconi, Meloni, com o seu ar de menina e a sua energia polémica, equilibrando os princípios com as exigências da praxis, aparece à frente do governo de Itália, já não como um modelo de antítese, mas como um modelo de síntese.