Na sala dos meus avós havia dois quadros onde o rosto dos meus trisavós estava desenhado. Eram figuras tão imersivas que, a certa altura, eu e o meu irmão imitávamos as representações que, quem os tinha conhecido, fazia das suas vozes. Lembro-me, por isso, do tom perturbadoramente nasalado que davam à voz do meu trisavô.
Quando morreu a última das suas filhas, mais de 50 anos depois do último deles falecer, quase nada restava no lugar onde tinham sido enterrados. Apenas um saco muito reduzido guardava os últimos vestígios.
Nessa altura compreendi que havia uma certa cultura da decomposição à minha frente, e da qual nunca me tinha dado conta. A minha tia-bisavó, que saíra dos pais, ia, naquele momento, esconder-se neles. E a essa cultura de decomposição haveria de se contrapor a do embalsamamento.
Decompor e embalsamar são mais do que técnicas ou abordagens ao fim da vida. São culturas, formas de conceber a existência, metáforas sobre o entendimento do mundo.
Lembrei-me, de novo, disto quando pensava na proximidade do centenário da morte de Lenine. Sobre uma dupla visita ao seu Mausoléu, Garcia Márquez descreveu, em 1982, o destino dos embalsamados como uma aparência de vidro. Lenine, cujo corpo tinha sido amputado para ser mais bem preservado, parecia-lhe a imagem de um mundo destinado a ficar-se pela metade. Os egípcios, por exemplo, incluíam no seu ritual de mumificação a recolha de órgãos nos vasos canopos, mostrando, assim, que a cultura do embalsamamento está ligada a uma disposição para a dispersão. Por esta via, é percetível, que uma certa tendência à recuperação da ideia de identidade carrega consigo não uma promessa de aurora, mas a armadilha da secessão. O mundo embalsamado é o mundo onde se opta pela desidratação, pelo snack, pelo tupperware. De facto, ainda que o diagnóstico da falência e declínio do ocidente seja verdade, pensar em preservar o seu cadáver é unicamente parasitar a memória.
Ao invés, a aptidão para a decomposição é a antecâmara da fecundidade. É disso que fala a pintura de Francis Bacon ou a música de Olivier Messiaen: da libertação da acumulação e da mineralização da vida. No pensamento cristão, aliás, decompor-se é a prova da existência comum, por oposição à incorruptibilidade. Existe uma duração vegetativa da existência que se petrifica sem decomposição.
Tal como na natureza, ao contrário de exaltadores, talvez precisemos de decompositores, uma função biologicamente atribuída aos seres heterotróficos, aqueles que, por antonomásia, são incapazes de produzir o seu alimento; aqueles de quem Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, disse “não conseguirem afrouxar as suas próprias cadeias, mas, não obstante, conseguirem libertar os seus amigos”, aqueles que, acima de tudo, estão “preparados para se queimarem na própria chama”.
Um dos perigos civilizacionais que corremos é viver a história como um momento de distanásia permanente, com medo que à decomposição corresponda o anulamento. A ideia de que precisamos de preservar a máscara e de que o mundo está reduzido a uma carcaça, que precisa de ser exposta, resguardada ou restaurada é o início do apelo sedutor do autoritarismo, cuja receita é sempre a criação da ruína para depois a tornar objeto de veneração.
A decomposição é, neste sentido, a recusa da eternização e a cedência de lugar dentro do espaço público, cuja redução é, para Hannah Arendt, o despoletar do totalitarismo. Mas uma cedência que é vestigial, que comparta uma “duração vegetativa” e não uma petrificação. Talvez, por isso, ninguém terá tido maior compreensão do mundo, que os homens que apascentavam rebanhos dentro dos antigos edifícios do império romano na cidade eterna. É isso que nos falta: procurar alimento nos escombros.