1. A vida não tem um valor absoluto. Mais: a vida não é sequer o valor mais alto do ser humano. Pelo menos na perspectiva de uma ética que se quer verdadeiramente humana. E, se podemos fazer esta afirmação dentro da âmbito de uma “ética natural”, mais ainda e com maior propriedade ela tem sentido no contexto de uma ética religiosa. No campo da religião, a fé apresenta-se como um valor claramente superior à vida. Que o digam os mártires de todas as religiões e, nomeadamente, da religião cristã à qual pertenço. O próprio fundador desta religião afirmara que o valor mais alto é dar a vida pelos amigos. E assim Ele próprio o fez. Chegara mesmo a afirmar da sua própria vida: “Ninguém ma tira; sou Eu que a ofereço livremente” (Jo 10, 18). Há, por isso, para o cristão, valores pelos quais vale a pena morrer.

Mas não é necessário professar uma religião para assumir que há valores mais altos do que a vida: a honestidade, a honra, a integridade, a fidelidade, o amor, a dignidade são valores comuns a todos os cidadãos. Sim, a dignidade. Peço a Deus que, se algum dia tiver que decidir entre a vida e a dignidade, me dê força para optar pela dignidade, pois sei bem que esta é um valor, em muito, superior àquela. Quero morrer com dignidade!

2. Por isso, por favor, quando eu estiver a morrer, não me ponham “ligado à máquina” a preços exorbitantes, com tratamentos extraordinários e desproporcionados, para alongar a minha vida mais uns dias. Se possível, deem-me analgésicos e paliativos que me tirem as dores e os sofrimentos, mesmo sabendo que, eventualmente, esse procedimento pode abreviar o meu tempo de vida. Usem apenas meios que me possam trazer algum benefício real, que possam ser aplicados sem dor e cujo custo seja razoável. De resto, podem desligar tudo ou cessar outros tratamentos. Deixem-me morrer em paz. Por favor, deixem-me morrer com dignidade!

3. Não troco a minha autonomia por uma autossuficiência mascarada. Quero ser humano até ao fim, pois sei que a dignidade está no facto de ser pessoa. O que é verdadeiramente humano, essa é a questão que nos move. E aqui, o conceito de autonomia pessoal ganha uma importância crucial. Para alguns, a fragilidade, a debilidade, a dependência, a deformação física ou demência, a deficiência, a dor, o sofrimento podem conduzir à perda de autonomia e, nesse caso, a vida perderia toda a dignidade. Mas não é a vida em abstrato que é digna; é a pessoa humana que é digna. Por isso, enquanto for ser humano, é sempre digno!

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Claro que a autonomia é um valor essencial a salvaguardar. Mas, quando considerada como um valor isolado, absolutiza-se e torna-nos menos humanos. O centro do mundo passa a ser exclusivamente o nosso próprio eu, exaltamos a individualidade e perdemos toda a noção de responsabilidade e de bem comum. E respeitar a autonomia de alguém a este nível absoluto corresponde a isolá-la. Isto não é respeito pela autonomia; tem outro nome: indiferença face à autossuficiência. Diante de alguém que se defende dentro do muro da sua autossuficiência, mesmo que doente, preferimos afastar-nos (tantas vezes por não sabermos lidar com a pessoa) e tornar-nos indiferentes em vez de exigentes. E dizemos: “ele é que sabe, é a sua vida, é a sua morte”. E, plenos de uma pena pelo coitadinho mascarada de compaixão, afirmamos: “tem direito à sua última decisão”. Por favor, defendam-me da minha autossuficiência. Ajudem-me a morrer com dignidade!

4. Finalmente, por favor deem-me uma morte assistida. Melhor: uma morte acompanhada. Morrer não é um momento; é um processo. Começamos a morrer desde que nascemos. Mas o último suspiro deve ser uma experiência de grande solidão. Por isso, se for possível não me deixem sozinho nesse momento. Sempre atenua a solidão do ato de morrer. Vou-me conhecendo cada vez melhor e sei que de herói não tenho nada. Que bom que era se morresse com amigos e família à minha volta. As relações são tudo na vida. Haverá morte mais digna do que aquela que espelhe o que foi a vida?

5. Convém deixar explícito que a eutanásia não é a cessação de tratamentos extraordinários ou desproporcionados. Isso é apenas deixar morrer. Tratamentos desproporcionados são eticamente reprováveis. Morrer faz parte da vida, e deixar morrer também. Mais, o uso de analgésicos e tratamentos que aliviem o sofrimento, mesmo que abreviem o tempo de vida, são um bem. A intenção aqui conta muito. A eutanásia é uma ação ou uma omissão que, na intenção, cause a morte com o fim de suprimir o sofrimento. E não o contrário: uma ação ou omissão que tenha como intenção aliviar o sofrimento, mesmo que aproxime o momento da morte, não é eutanásia; é um ato médico no sentido mais profundo do que é ser médico. Porque ser médico, mais do que tratar doenças, é tratar as pessoas.

6. Por isso, recusando-me a considerar que aqueles que são a favor da eutanásia são todos assassinos, estúpidos ou más pessoas, apenas deixo aqui o meu testemunho do desejo de viver com dignidade até ao fim. A eutanásia rouba-me a dignidade. Porque a morte não é um assunto privado, só meu. Quando morre um pai ou uma mãe, um irmão ou um filho, a mulher ou o marido, sabemos bem que essa morte não é só daquele que morreu. Não é um assunto só seu. Nós não nos constituímos acima de tudo como indivíduos, mas como parte de um grupo, de um corpo. Ao contrário do que a aparência quer gritar, é a interdependência que existe entre nós que nos torna verdadeiramente humanos. Diria mesmo que é a fragilidade própria da nossa contingência que nos faz ser mais pessoas. Porque nos diz que precisamos uns dos outros para sermos nós próprios. E isto não nos rouba a autonomia, mas defende-nos da autossuficiência. Bendita fragilidade humana que nos aproxima uns dos outros. As relações – não a aparência, não a saúde, não a autonomia absoluta – tornam-nos mais humanos e, por isso, mais dignos.

Portanto, unir a escolha da própria morte à dignidade é uma falácia. Uma lei que defendesse esta suposta “morte com dignidade”, estipularia que os doentes, pelo simples facto de o serem, perdem toda a responsabilidade para com os outros e podem chegar ao direito de nem sequer ter que notificar os amigos ou os parentes próximos para tomarem a sua “última grande decisão”. Retirar todas as responsabilidades a uma pessoa doente é considerá-la menos pessoa, é desrespeitá-la, inclusivamente nessa autonomia que se diz querer defender. E, isso sim, é subtrair-lhe toda a dignidade. Morrer com dignidade é ser responsável até ao fim.

Padre jesuíta