Maria João Marques declarou-se, aqui, há dias, a favor do consumismo. No seu artigo pedia a nossa colaboração para as suas rápidas melhoras. Não me considero à altura de lhe proporcionar tal benefício, nem tão-pouco sei se me incluiria naqueles que pertencem “à parte religiosa respeitável”. Mas, sem querer responder-lhe, até porque não me pediu opinião, arrisco apanhar a sua boleia.

Claro que a apoio! Mas consumamos a sério! Não sejamos sovinas nem mesquinhos.

Como é óbvio, não sou ingénuo ao ponto de pretender ter respostas, nem muito menos soluções ou receitas, para o problema da desigualdade a nível mundial. Mas a desigualdade aumentou. Como sabemos, os números podem usar-se de formas diferentes e, como escrevi aqui no Dia Mundial dos Pobres, segundo o último relatório da FAO, juntamente com o aumento da população mundial que padece de fome crónica (com prevalência da subnutrição), o número de pessoas subalimentadas no mundo também aumentou de 777 milhões em 2015 para 815 milhões em 2016. Incrivelmente, este número que vinha a descer desde 2004, recomeçou a subir em 2014. E, segundo a ACNUR, no final de 2016 havia cerca de 65,6 milhões de pessoas forçadas a deixar os seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos – mais 300 mil do que no ano anterior.

Mas não é tanto esta a questão que discuto, até porque quando afirma que mil milhões de pessoas saíram da pobreza entre 1990 e 2010, só posso concordar que é um “resultado maravilhoso”. O que cria alguma perplexidade é que hoje parece ser impossível admitir que a realidade possa não ser fraturante. É o mito americano do cowboy e do índio (habituámo-nos a importar tanto de Hollywood que já nem nos damos conta), do “eixo do bem contra o eixo do mal”. Agudizou-se com o “je suis Charlie”. Parece sempre que só há duas alternativas: ou je suis Charlie, ou sou terrorista. Ou sou a favor do aborto ou discrimino as mulheres. Ou sou capitalista liberal ou sou marxista. Ou sou consumista ou sou pobre. Os populismos de direita ou de esquerda vieram mesmo para ficar. Como se as grandes questões da vida fossem as questões fraturantes. A vida é um bocadinho mais complexa.

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Ser-se crítico da tradição a que se pertence e do sistema em que se vive é saudável. Por exemplo, a simples questão do valor do trabalho humano e do valor do capital. Na nossa cultura, é óbvio que o primeiro se submete ao último. Porquê? Para o Papa João Paulo II, que está acima de todas as suspeitas de comunismo, “o trabalho, pelo seu carácter subjetivo ou pessoal, é superior a todo e qualquer outro factor de produção: este princípio vale, em particular, no que tange ao capital” (Pontifício Conselho Justiça e Paz, Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 276), pois “o trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social, se nós procurarmos vê-la verdadeiramente sob o ponto de vista do bem do homem” (Laborem Exercens, 3).

O consumo é necessário por uma série de razões que todos sabemos. Mas colocar a questão de modo a afirmar tout cour que as compras desenfreadas dos ricos matam a fome aos pobres é de um enorme simplismo. Porque “importa reconhecer que o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho — ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção” (João Paulo II, Laborem Exercens, 7).

O sistema económico em que vivemos tem muitas virtudes, mas está muito longe da perfeição. E uma das maiores imperfeições é a de criar e manter círculos viciosos de riqueza e de pobreza. É fácil um rico dizer que o pobre é pobre porque não quer trabalhar. Mas a superficialidade desta afirmação comum só confirma a distância cada vez maior, não só material mas de concepção do mundo, entre ricos e pobres.

Por isso, a questão não está “entre a perdição moral materialista do abonado europeu (ou americano) e o rendimento suficiente para uma família vietnamita alimentar os seus filhos”, como se tivesse que ser uma coisa ou outra. Que uma família vietnamita tenha que sofrer o que sofre para angariar umas migalhas de sustento enquanto nós aqui podemos abundar e desbundar – e ainda por cima justificados porque a estamos a ajudar –, essa é a questão. Como sabemos, os gadgets electrónicos e as roupas vendidas a um preço estupidamente elevado aqui são, muitas vezes, produzidos à custa de míseras condições de trabalho nos “países pobres”. E isto é simplesmente imoral. Porque “se, constrangido pela necessidade ou forçado pelo receio dum mal maior [o trabalhador], aceita condições duras que por outro lado lhe não seria permitido recusar, porque lhe são impostas pelo patrão ou por quem faz oferta do trabalho, então é isto sofrer uma violência contra a qual a justiça protesta” (Leão XIII, Rerum Novarum, 27).

Por isso, a moralidade do europeu (ou americano) abonado está diretamente relacionada com a imoralidade da situação da família vietnamita, porque esta diz diretamente respeito “às nossas responsabilidades sociais e, por isso, ao nosso viver e às decisões que temos de tomar, coerentemente, acerca da propriedade e do uso dos bens” (João Paulo II, Sollicitudo rei socialis, 42).

A questão não está entre ser capitalista ou comunista. Recuso-me a ter que decidir entre a defesa do capitalismo liberal selvagem e o comunismo. Posso defender a propriedade privada como defendo, sem arredar pé da afirmação de que há um destino universal dos bens. Mais: o direito à propriedade privada subordina-se ao destino universal dos bens e é apenas um meio (não um fim) para este destino (Paulo VI, Populorum Progressio, 22-23). A propriedade privada tem uma função social (João XXIII, Mater et Magistra). E se o destino dos bens é para ser universal, será sempre injusto enquanto for apenas parcial. Podemos reconhecer a nossa incapacidade de viver a justiça, mas jamais poderemos desistir de lutar por ela. E acreditar ingenuamente que o mercado se autorregula, já vimos onde nos leva.

A questão também não está no consumir ou não consumir. Está, sim, no modo e no que consumir. Porque não consumir e manter o dinheiro no bolso amealhando para mim e para os meus, sem gerar qualquer riqueza, é o pior modo de ter dinheiro.

Neste Natal consumamos, mas compremos presentes com coragem, criatividade e proatividade. Por exemplo: por cada presente que comprarmos a um determinado preço, dêmos uma quantia idêntica (ou ao menos metade, vá lá) a uma instituição de apoio a pessoas necessitadas.

Ou compremos presentes solidários. Há muitas ideias de presentes destes: pego no dinheiro que gastaria num presente e dou-o a uma instituição. Em troca, recebo dessa instituição um cartão de presente solidário, que eu dou à pessoa a quem daria o dito presente. A pessoa que recebe o cartão de presente solidário fica a saber que, em vez dela, alguém mais necessitado recebeu algum bem material e, assim, contribuem os dois: o que comprou e o que recebeu o cartão (deixando de receber o presente).

Às crianças, em vez de as enchermos de brinquedos, peçamos-lhes que elas escolham um ou vários dos seus brinquedos em bom estado, que embrulhem e se preparem para o(s) dar a alguém. Talvez experimentemos que a generosidade delas é maior do que o nosso gosto em dar-lhes presentes – ou talvez fiquemos a saber que precisamos de as educar melhor para a partilha.

Demos presentes culturais (idas ao museu, teatro, cinema; livros…) a quem geralmente não tem acesso à cultura.

Tenhamos a coragem de convidar alguém (mesmo que nos seja estranho), que viva sozinho ou com dificuldades, para vir a nossa casa neste Natal. Sim, em vez de contribuirmos ou ajudarmos numa ceia de Natal para os sem-abrigo, organizada por alguma instituição, introduzamos alguém estranho no quentinho aconchegado da nossa família. As nossas juntas de freguesia, os lares de idosos, os centros paroquiais, os hospitais ou as ruas dos nossos bairros saberão de pessoas nestas circunstâncias. E gastemos alegremente dinheiro com elas. “‘Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, o coxos e os cegos. E serás feliz” (Lc 14, 12-14). Serás feliz! Aqui está o segredo de uma família feliz” (Papa Francisco, Amoris laetitia, 183). Quem me dera ter a coragem de ser feliz!

Sacerdote jesuíta