Alguns de nós, afectados por doenças neuro-psiquiátricas e défices cognitivos, como a doença de Alzheimer – responsável por mais de metade dos casos de demência -, enfrentam hoje desafios acrescidos, com consequências incalculáveis para os próprios, para as famílias e para todas as sociedades.

Estas pessoas não se vão lembrar dos factos e dos números, mas vão sentir e sofrer as consequências da forma como foram tratadas durante esta pandemia.

Em todo o mundo, são estimados 9,9 milhões de novos casos de demência por ano1,2. A Covid-19 apresenta, à data, cerca de 7,9 milhões de casos activos3, prevendo-se que possa atingir facilmente o mesmo valor/ano.

Todos reconhecemos que lidamos com duas doenças graves, com elevada incidência ao nível mundial, com maior impacto nos contextos com baixo e médio rendimento e onde a idade avançada se assume como principal factor de risco.

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Perante a esmagadora realidade do impacto do coronavírus nos “lares”, não será difícil imaginar, que também em Portugal as pessoas com demência tenham sido negligenciadas no meio da batalha contra o coronavírus. Porque os dados nacionais são escassos, recorremos aos números internacionais:

  • Nos Estados Unidos, entre março e agosto, registaram-se mais 13200 mortes que em anos anteriores, devido a doença Alzheimer e a outras demências, com relatos de aumento de quedas, infecções pulmonares, depressão e fragilidade súbita em pessoas que tinham estado estáveis durante anos4;
  • As pessoas com demência representaram 25% de todas as mortes por Covid-19 em Inglaterra e no País de Gales, 31% na Escócia e 19% em Itália5;
  • A nível mundial, num estudo que envolveu nove países, do total de pessoas que morreram por Covid-19 em estruturas residenciais, 29% a 75% viviam com demência5.

Já tínhamos percebido que as mortes não-Covid eram superiores ao esperado para a época do ano – e o mesmo terá acontecido para as pessoas com demência. Na prática, estas pessoas parecem estar a morrer não só devido ao vírus, mas também devido à própria estratégia de isolamento que é suposto protegê-las.

Os números mostram um declínio mais acelerado, associado ao aumento de quedas, a infecções pulmonares, à depressão e à fragilidade súbita em pacientes que tinham estado estáveis durante anos.

Depois do Dia Mundial da Doença de Alzheimer (21 de setembro) e do Dia Mundial do Idoso (1 de Outubro), o silêncio sobre o tema tornou-se verdadeiramente ensurdecedor.

O silêncio das estruturas e das estatísticas governamentais sobre a demência e Covid-19, que dificultam a análise e os esforços de preparação para qualquer segunda vaga, desta ou de outra pandemia.

O silêncio das pessoas com demência, não tanto motivado pelas suas dificuldades funcionais e cognitivas, mas sobretudo por um contexto fragilizado que resiste ao diálogo e a chamar para a “mesa de negociações” as pessoas mais vulneráveis, ignorando os seus percursos de vida.

E o silêncio dos cuidadores formais e informais: os primeiros, porque insistem em não perguntar e registar a doença e o seu estadiamento, útil aos diferentes níveis de cuidados; e os segundos, sufocados (i) por normas que se sobrepõem ao bem estar e à qualidade de vida, (ii) por planos de contingência que ignoram a mobilidade, a estimulação cognitiva e o envolvimento social e, ainda, (iii) pela ignorância face a uma legislação consolidada em termos de direitos e deveres dos utentes dos serviços de saúde.

Estas regras gerais de acompanhamento (Lei n.º 15/2014, de 2014-03-21) são um garante de que “todas as pessoas têm direito a acompanhamento” (em particular os que se encontram em situação de maior vulnerabilidade) e não consta que tenham sido revogadas ou suspensas pelos diversos diplomas legais e pelas diferentes medidas impostas no combate à pandemia. Contudo, terá sido necessário lembrar estas regras (em circular interna do Ministério da Saúde), quando se começou a dar notícia de que, devido à pandemia, muitas pessoas mais velhas com alterações cognitivas evidentes estavam a ser impedidas de entrar acompanhadas em unidades de saúde e, como consequência, terão abandonado estas estruturas sozinhas, sem conhecimento dos seus familiares ou cuidadores informais.

As pessoas com demência encontram-se cada vez mais sós, aceleraram o declínio cognitivo, diminuíram o bem-estar e, provavelmente, reduziram a esperança de vida. Além disso, como já sabemos, o isolamento, o desgaste das relações de proximidade e o medo conjuntural são um convite à violação de direitos fundamentais. Não podemos também nós “entrar mudos e sair calados” desta pandemia. E para (re)começar, que tal ouvir as vozes mais silenciosas?

(1) World Alzheimer Report 2015. Alzheimer’s Disease International;
(2) Dementia: Factsheet. World Health Organization (2020);
(3) Coronavirus update. Worldometer;
(4) Covid-NET. Center for Disease Control;
(5) Impact and mortality of COVID-19 on people living with dementia: cross-country report. International Long-Term Care Policy Network (2020).