Nós, modernos, que fizemos das viagens um estilo de vida, quantas vezes nos encontrámos já em lugares remotos (não tanto do mundo, mas de nós mesmos) perguntando-nos: para onde vou? Acontece que viajar não significa de forma alguma mudar de lugar. Etimologicamente, não implica movermo-nos um centímetro sequer, pois o verdadeiro significado de viagem é “tudo quanto é necessário para viajar”: provisões, mapas, algumas certezas, muitas interrogações, fios, desejos sobretudo – eis quanto deve preencher a única mochila que levamos aos ombros, ou melhor, dentro de nós. Turistas, viajantes, vagabundos ou simples figurantes da existência, compete-nos alijar a viagem de toda a raiva, ressentimento, egoísmo e medo.

Em 334 a.C., conquistada a Grécia, Alexandre Magno desembarcou na Ásia determinado a subjugar os persas por terem saqueado Atenas e ateado fogo à Acrópole. Deixando uma guarnição na Macedónia, partiu diante de trinta mil de infantaria e cinco mil de cavalaria. Cruzou o Helesponto e imediatamente arrostou o exército de Dario III, junto ao Granico. Dotado de extraordinário talento militar, embora com um exército numericamente inferior, Alexandre venceu a batalha atacando as fileiras persas pelo meio: quando a infantaria viu o centro colapsar, fugiu aterrorizada.

Após esta vitória, o exército prosseguiu rumo à Jónia. Mas, chegando ao sul da Anatólia, em Novembro de 333 a.C., perto da cidade costeira de Isso, entalada num estreito golfo, Alexandre viu, alinhado e pronto para a batalha, todo o exército persa, determinado a bloquear a sua marcha.

Os soldados macedónios ficaram aterrorizados e um silêncio sombrio caiu sobre o exército: estavam certos de que aquele confronto seria a sua morte e aquele mar o seu túmulo. Uma retirada rápida era a única possibilidade que ousavam esperar: começaram a posicionar meticulosamente os navios ao longo do golfo para poderem escapar o mais rapidamente possível.

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Alexandre observou a cena de longe. Concluídas as manobras, levantou-se, reuniu na praia toda a lenha disponível e acendeu a enorme pira. Sob o olhar dos soldados, o general lançou fogo à sua própria frota, rapidamente reduzida a cinzas. Ficaram todos tão incrédulos que não sabiam o que fazer ou dizer: «Os navios não têm qualquer préstimo agora. Nada nos resta senão vencer e regressar a casa nos navios inimigos».

Venceram.

Dario III deixou o escudo no campo de batalha, gesto de suprema e humilhante rendição, e fugiu, cobarde, abandonando o seu irmão para morrer no seu lugar. E foi a bordo dos navios persas, depois da mudança de pavilhão, que os soldados de Alexandre retomaram a viagem de conquista rumo ao Oriente desconhecido.

Uma das representações mais poderosas (e comoventes) da batalha de Isso está preservada num mosaico encontrado em Pompeia, na Casa do Fauno, e hoje exposto no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles. Por entre as milhões de pedrinhas que o compõem, ainda se pode ver o olhar ardente de Alexandre avançando orgulhosamente contra o inimigo montado no seu fiel Bucéfalo. Atrás de si, nem um navio.

Desejar. Do latim desiderare, formado por de-, preposição que indica separação, portanto perda, e sidera, “estrelas”. Literalmente, fitar uma coisa ou pessoa que nos escapa, mas que nos atrai e desejamos. À semelhança do que fazemos há milénios observando os padrões nocturnos das estrelas, na eterna busca por algo maior do que nós.

Os Argonautas ensinaram-nos que, durante a viagem, o desejo é uma arma invisível, mas invencível. Quem sabe desejar sobe às estrelas, com o olhar sempre voltado para a imensidão do céu e nunca para a pequenez dos pés. E apenas quem sabe desejar sabe também viajar.

A possibilidade de alcançar um porto é diretamente proporcional à força de desejar essa chegada. E à tenaz persistência de não deixar nunca de sentir a sua falta – essa indizível nostalgia, visceral e salgada necessidade de arribação e pertença a um fio.

Quem quer que pretenda cruzar o limiar para desembarcar em si mesmo deve inevitavelmente estar disposto, como Alexandre, a queimar os navios atrás de si. Todo o crescimento humano implica o gesto de queimar pontes atrás de nós: não com quem até aí fomos e amámos, mas com as nossas incertezas, os nossos arrependimentos, as nossas mil justificações, todas atendíveis e todas igualmente supérfluas e inúteis.

Viagem que o é não permite cobardias nem recuos, caso contrário é uma excursão de reformados, com os olhos cravados na terra e não no desconhecido, que sempre seremos, como as estrelas. E escolha que verdadeiramente o é não admite calculismos nem subterfúgios: os Argonautas carregaram em ombros o seu navio durante doze dias pelo deserto para regressar a casa.

Para debaixo de que tapete varremos o heroico arrojo do desejo? A que altura estão as estrelas pelas quais ansiamos hoje e quão grandes são os sonhos que expressamos se virmos uma cair? Os gregos davam às constelações nomes inspirados em mitos. Nós, desprovidos de narrações, olhamos o céu nocturno apenas para nele recortar aquele precioso pedacito que mais se ajusta ao enésimo post. Ainda olhamos para as estrelas, mas já não nos sabemos orientar na imensidão que somos nem encontrar o nosso lugar no mundo.

Três mil anos depois da viagem do Argo, somos uma versão diminuída, cómica e liofilizada de nós mesmos: yuppies derramados pelos cais do metro confessando, entre sorrisinhos púberes com blazers da Zara, sonhos eróticos com software SAP e lambendo com olhos lúbricos uma promessa de consulting na área das big tech, sem que do amor temam o terno chicote nem aos filhos dispersem a morte e o para sempre em cada fôlego; o grande mantra dos team builders da mediocridade é a paixão pela pequenez, não ousar nunca; não queimar nenhum navio, mas empilhá-los todos, uns por cima dos outros, quer nos sejam úteis quer tenhamos de desistir de tudo e fugir.

Quando, como intuiu Alexandre, importante é não esquecer nunca que qualquer vitória depende de uma chama: aquela em que têm de arder os nossos medos, as nossas hesitações, as nossas dúvidas para no fim deixar tudo para trás. Incluindo os navios que nos prendem à costa em vez de nos levarem para longe.

Tens lume?