A comunicação entre pessoas, em particular a comunicação argumentativa, pressupõe que aqueles que dialogam estejam de acordo quanto aos conceitos que utilizam na discussão. Afirmou-o Habermas, mas a sabedoria popular sempre lamentou “falar em alhos e responderem em bugalhos”. Atualmente, sobretudo a propósito das questões fraturantes, é frequente assistirmos a discussões que não são mais do que uma “mistura dissonante de pontos de vista fragmentados”, nas palavras de Alasdair MacIntyre.
Assim, por exemplo, os defensores da eutanásia e aqueles que se lhes opõem socorrem-se do discurso dos direitos fundamentais para fundar os seus argumentos, utilizando expressões como liberdade e dignidade. Contudo, não existe qualquer ponto comum na discussão, porque os interlocutores conferem a esses termos significados essencialmente distintos.
A manipulação do discurso dos direitos fundamentais é uma tentação, pois geralmente pretende sugerir a superioridade moral do argumento. Quem ousaria propor algo que limita ou reduz os direitos fundamentais? Mas essa manipulação acaba por enfraquecer os direitos, porque os esvazia, tornando-os abertos a qualquer significado, até ao ponto em que deixam de significar coisa alguma.
Ora, os verdadeiros significados, ricos em substância, dos conceitos de dignidade e liberdade, apontam no sentido da rejeição da eutanásia. Vejamos.
Em primeiro lugar, quem pretende a liberalização da eutanásia afirma que se deve conceder às pessoas o direito a uma morte digna. Mas não é essa a função da dignidade na teoria dos direitos fundamentais.
O princípio que atravessa o constitucionalismo moderno é o da dignidade da pessoa humana. Da pessoa, e não das suas circunstâncias pessoais. Toda a pessoa encerra uma dignidade absoluta, objetiva, não comensurável nem sujeita a gradações em função das condições em que se encontra, sejam elas económicas, sociais, ou de saúde. Nenhuma Constituição refere a dignidade da morte, porque isso implicaria admitir que o seu contrário, a vida, poderia em determinado momento ser indigno. Ora, tão digna é a criança bonita, feliz e saudável, quanto o doente ou deficiente acamado e sozinho, quanto o velho, pobre e sem-abrigo.
Será que isso representa indiferença, passividade ou insensibilidade diante do sofrimento? Significa isso que nos devemos conformar, ou suportar estoicamente as dificuldades económicas, sociais, ou de saúde, dos outros ou as nossas próprias? Pelo contrário: o reconhecimento da dignidade da pessoa impõe, torna urgente, o cuidado sobre cada uma. Impõe-no a cada um de nós, e impõe-no ao Estado, que deve prover às necessidades básicas de todos ou garantir que elas são asseguradas. É, por isso, do reconhecimento da dignidade da pessoa que decorre, entre outros, o direito à saúde, na sua dimensão de prestação por parte do Estado.
Importa acrescentar, que pretender valorar as pessoas segundo a qualidade da sua vida, considerando umas mais dignas que outras, é muito perigoso, tendo justificado os maiores horrores a que a humanidade assistiu no séc. XX. Atualmente, a propósito da escassez de ventiladores, a perspetiva de ter de graduar as pessoas segundo esse critério volta justamente a horrorizar-nos. Ora, uma tal valoração será inevitável caso a eutanásia venha a ser aprovada, pois a validação do pedido do doente dependerá de alguém – um médico, ou um psicólogo – avaliar se o “sofrimento é extremo”. O que é extremo, senão um termo quantitativo? Alguém quererá realmente assumir o terrível encargo de decidir que a vida de uma pessoa vale pouco, autorizando a sua morte?
Em segundo lugar, a eutanásia surge, para os seus defensores, como um exercício de liberdade do indivíduo. É preciso que se note, primeiramente, que não existe verdadeiro exercício de liberdade quando não existe alternativa – como acontece num país em que os cuidados paliativos não cobrem senão uma parcela ínfima do território. Mais: o argumento da autonomia assenta num paradoxo, que é o de admitir que alguém, “em situação de sofrimento extremo, com lesão definitiva ou doença incurável ou de gravidade extrema”, possa, apesar disso, ter frieza suficiente para manifestar uma “vontade atual, livre, séria e esclarecida” de morrer.
Mas estes nem devem ser, sequer, os pontos decisivos; servem apenas para demonstrar como o argumento da liberdade não é definitivamente assumido pelos autores dos projetos de despenalização.
O ponto decisivo é que a liberdade, ao contrário da dignidade, não é absoluta: conhece gradações legítimas, por variadas razões, incluindo por ter de se articular com outros princípios. Ora, a liberdade acrescenta e amplifica a dignidade da pessoa, mas não a pode diminuir, nem com autorização do próprio. É por isso que a escravatura e a tortura seriam proibidas mesmo se fossem consentidas e é por isso que, num plano mais trivial, o uso do cinto de segurança é obrigatório, mesmo para quem afirme não dar valor à própria vida e segurança.
Por outro lado, é o direito à vida, e não a liberdade, que encabeça o rol de direitos fundamentais na Constituição portuguesa. A ordem não é aleatória e deve ser levada a sério: a vida é o primeiro direito fundamental, condição de todos os outros direitos e liberdades, porque é nela que a dignidade se assume em plenitude. A liberdade concorre para a vida; não pode concorrer para a morte.
Por fim: pode alguém pretender que a eutanásia não seja aprovada, apenas porque não a deseja para si? Não deveria ser este um campo favorável ao pluralismo?
Não sejamos ingénuos: não existem leis neutras. As leis exprimem valores, sem os quais a ordem jurídica se torna injusta. Uma lei que permita a eutanásia dirá, explícita ou implicitamente, que a pessoa não é, sempre, digna. Uma lei assim dispensa e protela a busca de soluções que reintegrem o doente na sua dignidade. Uma lei assim tolhe a liberdade de quem se encontra em situação de doença grave e gostaria de continuar a viver. Uma lei assim cria um enredo higiénico de burocracia, comissões de controlo, de verificação, de avaliação e de produção de relatórios, abafando um grito de ajuda do doente no meio de um manancial de gente e papelada e ignorando a única coisa que ele realmente pede – alívio do sofrimento e cuidado no fim da vida.