A propósito da VI Convenção do Chega (12/13/14 de Janeiro deste ano), diversos jornalistas abordaram o partido sob várias perspectivas, designando-o ora como “extrema-direita”, ora como “direita radical”, ora como “populista”. Para qualquer observador da vida política portuguesa, surge uma considerável confusão semântica. Este cenário é compreensível, especialmente dado que o estudo das direitas políticas mais “duras” ser relativamente recente em Portugal.

Nos últimos meses, uma tendência tem-se destacado: há uma importante parcela da classe política e dos jornalistas que sugere a ascensão da extrema-direita em Portugal. Na minha perspectiva, a confusão semântica mencionada anteriormente contribui para disseminar esta ideia errada na opinião pública.

É verdade que tem havido um esforço no sentido de se diferenciar as diferentes direitas, e foi certamente com este intuito que a jornalista Maria João Guimarães publicou um artigo no jornal Público intitulado “Populismo, direita radical e extrema-direita – O que são e onde está o Chega?” (26/08/2023). O artigo explorava as nuances entre a extrema-direita, a direita radical e o populismo de direita. No entanto, do meu ponto de vista, o artigo parecia sugerir que existe apenas uma diferença de grau entre a direita radical e a extrema-direita, uma visão com a qual discordo. Defendo que existe, de facto, uma diferença de natureza entre estas correntes.

Com este texto, pretendo demonstrar que não há nenhum partido de extrema-direita com representação Parlamentar em Portugal, uma vez que a extrema-direita é actualmente residual, tanto no nosso país como na Europa. Há, sim, um partido, o Chega, que se situa entre a direita liberal-conservadora e a direita radical. Para aprofundar a compreensão destes fenómenos políticos, é essencial analisar de forma breve as diferentes ideologias defendidas pelas alas mais “duras” da direita, assim como explorar a trajectória histórica destes movimentos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Extrema-Direita Contra-Revolucionária e Revolucionária

O sociólogo canadiano Mathieu Bock-Coté costuma dizer que, se todos falam na extrema-direita, ninguém oferece uma definição exacta. Tornou-se um conceito vago, útil para assustar pessoas. Acusar o adversário de ser membro da “extrema-direita” tornou-se um ataque utilizado para ostracizar o oponente e encerrar qualquer discussão. Existiram várias extremas-direitas ao longo da História, sendo a maioria bastante diferente do que consideramos hoje como sendo a “extrema-direita”.

Da Revolução Francesa até à Primeira Guerra Mundial, a extrema-direita tradicional era contra-revolucionária (ou reaccionária), ambicionava voltar ao status quo anterior à Revolução Francesa. Pensadores contra-revolucionários do século XIX ou do início do século XX, como Juan Donoso Cortés ou Charles Maurras, nada tinham a ver com a extrema-direita de estilo fascista e nazi. Sonhavam em regressar a um mundo pré-revolucionário. Ao contrário da extrema-direita contra-revolucionária, o fascismo italiano e o nazismo eram revolucionários – filhos das Luzes, segundo a tese do grande intelectual italiano Renzo de Felice – pois pretendiam destruir a modernidade não para retornar aos tempos anteriores a 1789, mas para criar um mundo novo do qual surgiria um “homem novo”. O historiador Frédérique Le Moal afirma no livro “Histoire du Fascisme” que a melhor maneira de responder à pergunta “o que é o fascismo?” é começar por dizer o que o fascismo não foi: “uma ideologia conservadora, e muito menos reaccionária, herdeira da contra-revolução e do seu imobilismo. Pelo contrário, o fascismo foi uma revolução social, política, cultural e, sobretudo, antropológica” (In “Qu’est-ce que le fascisme”, pp.9). Aliás, encontramos no fascismo (e no nazismo) uma característica comum a todas as ideologias herdeiras da Revolução Francesa: a necessidade de fazer “Tábua Rasa” do passado, algo também inerente à extrema-esquerda.

Na sua relação com a etnia, a extrema-direita contra-revolucionária podia ser anti-semita, mas não necessariamente racista. O historiador francês Jacques Bainville, membro da Action Française, dizia que não existia uma “raça” francesa, pois para ele “o povo francês é um conjunto, é melhor que uma raça, é uma nação”, numa visão não racial da nação. Pelo contrário, os nazis eram supremacistas, e esta característica fazia parte integrante da sua ideologia: para eles, um alemão tinha de ser germânico. Quanto ao fascismo, é mais complicado. Nos anos 30, chegou a haver 40 mil judeus membros do Partido Fascista Italiano. Mussolini começou por criticar o “racismo a norte dos Alpes”, mas a relação com Hitler acabou por mudar a visão que o regime fascista tinha da etnia.

A extrema-direita, seja ela contra-revolucionária ou revolucionária, sempre se opôs à democracia, demonstrando desde o início uma postura anti-democrática e anti-parlamentar. As críticas mais severas à democracia parlamentar podem ser encontradas nos livros de escritores da extrema-direita francesa pré-Primeira Guerra, como Charles Maurras ou Maurice Barrés; da geração “perdida” dos anos 30 e 40 – Céline, Drieu La Rochelle, Brasillach e Rebatet – bem como dos escritores alemães da Revolução Conservadora: Ernst Jünger, Oswald Spengler, Arthur Moeller van den Bruck, Carl Schmitt, Ernst Von Salomon. O Charles Maurras, por exemplo, acusava a democracia de tornar a Nação “impotente” e de a dividir em grupos antagónicos. Quanto ao liberalismo, era acusado de desenraizar as populações e, subsequentemente, de destruir as identidades regionais e nacionais.

Ódio à democracia, ao parlamentarismo, ao “intelectualismo” e ao liberalismo, mas também o facciosismo e a utilização da violência como arma política. Eis em resumo a verdadeira extrema-direita. Não encontramos na AfD, no RN, no Vox, no Chega ou no Fratelli d’Italia nenhuma das características anteriormente mencionadas. Há partidos de extrema-direita (revolucionária) como a Casa Pound na Itália, o Die Heimat (antigo NPD) na Alemanha, o BNP no Reino Unido ou a Aurora Dourada na Grécia. Mas mesmo estes partidos abandonaram quase por completo a violência política. Não existe um “perigo de extrema-direita” hoje em dia, a não ser nas mentes de certos jornalistas e políticos com muita imaginação. O poder da verdadeira extrema-direita é presentemente muito reduzido.

Direita Radical

O termo “direita radical” não é novo. Foi utilizado por jornalistas franceses nos anos 20 e 30, assim como nos EUA nos anos 50, para designar os adeptos do MacCartismo. Voltou a ser utilizado na Europa a partir dos anos 90 por politólogos, tal como o francês Jean-Yves Camus, autor do livro “Les droites nationales et radicales en France” (1992), ou o holandês Cas Mudde, que afirmava em 1996 que a direita radical fazia parte de uma nova família partidária. Outros politólogos, Pierre-André Taguieff por exemplo, consideram que os termos “extrema-direita” e “direita radical” são expressões equivalentes. A politologia alemã e norte-americana costuma separar a direita radical da extrema-direita, enquanto na politologia francesa ou italiana os cientistas políticos estão mais divididos.

Como surgiu a direita radical moderna? Novamente, os politólogos estão divididos. O alemão Kai Arzheimer, uma autoridade no estudo das direitas radicais e extremas, afirma que a direita radical moderna nasceu nos anos 80. Todavia, a transformação intelectual da extrema-direita durante os anos 60 e 70 foi sem dúvida umas das causas do aparecimento dos partidos de direita radical nos anos 80.

Durante os anos 60, surgiram em França, na Alemanha, na Itália ou na Bélgica, uma nova geração de militantes nacionalistas que rejeitou o que apelidavam de “velhas modas” da extrema-direita – o anti-parlamentarismo, o anti-intelectualismo, o ódio à democracia, o nacionalismo chauvinista, o anti-semitismo. Vários homens marcaram esta mudança: de entre os mais conhecidos, Dominique Venner e Alain de Benoist em França, Adriano Romualdi na Itália, entre outros. Propunham utilizar a táctica do marxista italiano Gramsci: vencer primeiramente a luta meta-política, alcançando a hegemonia cultural e ideológica na sociedade, para somente depois conquistar o poder político.

O fervilhar de ideias nesta nova geração de militantes levou à criação de vários movimentos e organizações políticas. Um deles marcou a extrema-direita, não só em França, mas em toda a Europa: a Nouvelle Droite (Nova Direita), seguida posteriormente pela Neue Rechte na Alemanha e pela Nuova Destra na Itália. Ao racismo dos nazis, propunham o etno-diferencialismo, ou seja, o respeito das várias identidades e a protecção das mesmas contra a globalização capitalista. Ao neo-liberalismo devorador da direita liberal, propunham uma economia mais justa, que protegesse tanto as identidades como o meio ambiente. Ao nacionalismo chauvinista, propunham uma visão civilizacional da Europa, na qual o velho continente se transformaria numa “Europa das Nações”, ou numa Nação unida de tipo federal.

Outros movimentos intelectuais de direita surgiram ao longo dos anos 70 e 80, todos críticos das “velhas” extremas-direitas. Enquanto os membros da Nouvelle Droite em França integraram as fileiras da Frente Nacional nos anos 80, moderando o partido, membros da Neue Rechte e da revista Junge Freiheit ajudaram na criação da AfD na Alemanha, e intelectuais da Nuova Destra influenciaram partidos como a Lega ou a Fratelli d’Italia. Claro que outros factores explicam a evolução destes partidos, como o facto de os seus líderes terem todos nascidos depois da Segunda Guerra Mundial, ou a própria evolução da política internacional.

Presentemente, as diferenças entre os partidos de direita radical e os partidos de extrema-direita dos anos 20 e 30 são flagrantes. A direita radical aceita a democracia e defende-a como fazendo parte do ADN da Civilização Ocidental, enquanto a extrema-direita era e continua a ser anti-democrática. A direita radical rejeita o consenso político por ser anti-sistema, é certo, mas não pretendem instaurar ditaduras. Os partidos de direita radical não ambicionam acabar com as liberdades individuais, ao contrário da extrema-direita, pois reconhecem aos indivíduos direitos e liberdades. A prova é a Polónia ou a Itália: os partidos de direita radical ganharam as eleições, todavia não proibiram os partidos adversários, não acabaram com as liberdades fundamentais, e quando perderam as eleições (como no caso do PiS na Polónia), saíram do poder. O nativismo e o nacionalismo continuam a ser características da direita radical, mas não há a vontade de inferiorizar as minorias, apenas que estas aceitem a cultura da maioria. Não existe nenhuma ideologia racista no seio destes partidos. A oposição ao multiculturalismo assenta na preocupação de que esta ideologia possa criar comunidades estrangeiras hostis à nação que a acolhe (como aliás tem acontecido em certos bairros de Paris, Londres ou Berlim)… A visão anti-imigração dos partidos de direita radical não se prende com nenhuma ideologia racista, mas sim com a preocupação de preservar a identidade local, invertendo os actuais fluxos migratórios massivos, motivo de preocupação para muitos europeus. A maioria dos partidos de direita radical não pretendem desmantelar a União Europeia (contrariamente aos partidos de extrema-direita), desejam sim modificar uma instituição que consideram disfuncional, com o intuito de criar a chamada “Europa das Nações”.

Populismo de direita    

Se existe uma clara diferença entre a extrema-direita e a direita radical, resta responder à pergunta: “o que é o populismo” e onde “se situa”? Citando o intelectual Alain De Benoist, o populismo não é uma doutrina ideológica; é um estilo de governação. Segundo o filósofo francês, o populismo moderno é um fenómeno multifacetado que se alimenta do fosso cada vez maior entre o povo e as elites (políticas, económicas, culturais), expressando a inquietação das classes baixas quanto à perda de poder político e poder de compra. Ao contrário de uma ideia corrente, os movimentos populistas não são anti-políticos; criticam sim o monopólio político de uma pequena casta que se perpetua no poder e não concede espaço político às classes mais baixas. As elites são vistas como arrogantes, distantes, incompetentes, corruptas, vivendo numa autarcia que se torna insuportável.

O pensador americano Christopher Lasch criticava o comportamento das elites ocidentais no seu livro “The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy” (A Revolta das Elites). Segundo ele, o maior perigo para a democracia não provinha das massas, mas sim das elites cada vez mais corruptas, desenraizadas, cosmopolitas e, consequentemente, cada vez menos patriotas. Segundo o autor americano, estas elites teriam todos os vícios da aristocracia, mas nenhuma de suas virtudes.

Para o politólogo Jean-Yves Camus, o populismo, tanto de direita como de esquerda, assenta em dois princípios. O primeiro é a divisão da sociedade em dois grupos: o povo (sem divisão de classes) e as elites. O povo preocupa-se com o interesse nacional, enquanto as elites preocupam-se apenas com a perpetuação do seu poder político, económico e social. O segundo princípio é uma consequência directa do primeiro: os populistas pretendem substituir a democracia representativa pela democracia directa, evitando assim corpos intermediários entre o “povo” e o “líder carismático” (In “Le Retour des Populismes“, 2018, pp. 175 a 181). Assim sendo, os populismos são de direita quando pretendem estabelecer direitos (económicos, sociais) diferenciados com base na origem dos cidadãos (nativos ou estrangeiros), ou quando atribuem a maioria dos problemas (desemprego, criminalidade, poder de compra) aos imigrantes, especialmente os imigrantes extra-europeus. São populistas de esquerda quando atribuem a maioria dos problemas, senão todos, aos mais ricos, dividindo a sociedade entre dominadores e dominados.

Embora o termo populista seja vago, muitas vezes é usado como forma de denegrir o adversário político, fazendo com que perca seu real sentido. Se os cientistas políticos não concordam com a definição de populismo, há uma característica comum a todos os populistas: não há uma coluna vertebral ideológica bem definida. Os populistas, sejam os populistas agrários americanos do início do século XX, os populistas poujadistas franceses dos anos 50, os peronistas argentinos ou os populistas europeus e americanos do século XXI, seguem as modas do momento. Esta é a maior fraqueza dos populistas, o que explica muitas vezes a efemeridade destes movimentos.

Então afinal o Chega é de…?

Após analisarmos as principais características das direitas, resta responder à seguinte questão: o Chega é de extrema-direita? Não é, nem nunca foi. De facto, não encontramos no Chega discursos que critiquem o modelo de democracia parlamentar. Economicamente, o Chega não busca derrubar a economia liberal e substituí-la por uma economia socialista de tipo corporativista à maneira fascista. Também não encontramos discursos anti-semitas ou racistas no Chega (o partido é um forte apoiante do Estado de Israel). O Chega não é um partido faccioso, também não formou nenhuma milícia com o intuito de perseguir adversários políticos, ou seja, não há por parte do Chega a utilização da violência como arma política. Quanto ao nacionalismo do Chega, este existe tanto à direita como à esquerda. É contra a imigração massiva extra-europeia, mas tal como vários partidos de direita e até alguns de esquerda, como os Sociais-Democratas na Dinamarca (das políticas migratórias mais duras da Europa). Em suma, todas as características associadas à extrema-direita não são encontradas no Chega.  É um partido que está numa fase de construção ideológica, e nele encontramos características que o situam ora na direita radical, ora na direita liberal-conservadora.

Não existe uma vaga de extrema-direita no Ocidente; há sim um “mal-estar” e um “ressentimento” em relação à democracia representativa que, ao contrário do nome, já não representa os interesses do povo mas sim,  infelizmente, os interesses de uma elite que tudo faz para se manter no poder. Este mal-estar das massas explica a crescente popularidade de determinadas correntes de direita, no qual se encontra o Chega. Lançar a acusação de que o Chega é membro da extrema-direita é não só infundado, como os jornalistas e políticos que o fazem estão a entrar no famoso e deplorável jogo do chamado “teatro anti-fascista” (dixit o ex-ministro francês Lionel Jospin), criado na cínica mente do presidente francês François Mitterand, que nos anos 80 utilizou a Frente Nacional como espantalho para ganhar as eleições, utilizando um pseudo “perigo fascista” para atrair mais eleitorado. Anos mais tarde, o Lionel Jospin admitiu ao filósofo Alain Finkielkraut que nunca houvera um perigo fascista, que a Frente Nacional nem se podia comparar ao fascismo,  mas que tudo era apenas um “teatro” para a esquerda ganhar as eleições.

A esquerda portuguesa, à semelhança de grande parte da esquerda europeia,  decidiu inspirar-se no presidente Mitterand e recriar o mesmo “teatro antifascista”, com o único propósito de assustar os eleitores face a um suposto “novo salazarismo”. Em vez de encontrar soluções aos graves problemas que os portugueses enfrentam, apresentando propostas sérias, a esquerda portuguesa parece ter encontrado a melhor táctica eleitoral do momento: utilizar o “papão fascista” e assim, através do medo e da aversão, manter-se no poder indefinidamente.