Quando Alice trepou à lareira e saltou através do espelho de parede, deparou-se com um mundo fantástico em que tudo estava invertido, incluindo a lógica. Lá, tinha de correr para permanecer estacionária e quanto mais de afastava de algo mais próximo estava.

Há dias o Ministro das Finanças anunciou que a dívida pública em 2023 tinha sido afinal inferior ao PIB. O tom celebratório do anúncio não ecou na sociedade. De nenhum setor vieram concelebrantes. Como se fora, apenas, um facto menor num quotidiano cheio deles. Estranho e injusto num país que há menos de três lustres estava na bancarrota.

Talvez seja o tempo de campanha eleitoral que cala a ufania. A direita liberal, tradicional bastião das “contas certas”, não que dar trunfos aos concorrentes diretos.  A esquerda liberal, piscando os olhos aos iliberais à sua esquerda, não deseja parecer excessivamente ortodoxa. Os iliberais à direita e à esquerda não querem saber nem da dívida nem do défice pois não dão votos. E o cidadão comum? Esse, como a Alice, sente-se do lado errado do espelho onde ouve notícias de urgências fechadas, de grávidas sem saber onde dar à luz, de uma seca no Algarve sem resposta, de uma oferta pública de habitação inexistente, de uma ferrovia por desenvolver, da ciência onde não se investe o suficiente e de polícias em protesto. Para ele, como num mundo às avessas, a convergência soa a divergência.

Olhando para a execução orçamental de 2023 é fácil entender o brilharete de Fernando Medina (para além das “operações especiais”): receita acima do orçamentado e despesa por executar. Destaca-se, nomeadamente, o investimento público, cujos planos apenas foram executados a 75%. A incapacidade de executar o investimento público é grave por dois motivos. Em primeiro, porque a percentagem de investimento do “governo” no total do investimento já é das menores da OCDE (sendo que o próprio investimento é, ele próprio, baixo face ao PIB). Depois, e sobretudo, porque vem na sequência de 11anos em que o investimento em capital fixo das Administrações Públicas não chegou paras cobrir o consumo desse capital (ou seja, para impedir a deterioração da capacidade produtiva dos bens de capital). Acumulando o investimento líquido (negativo) entre 2011 e 2022, poderemos ter uma ordem de grandeza da dimensão da redução do stock de capital público:  cerca de 14 mil milhões de euros ou 5% do valor total da dívida pública em 2022. Dito de outro modo, se o investimento tivesse pelo menos coberto o consumo de capital – e, assim, o stock de capital tivesse permanecido ao nível de 2010 –, a dívida publica seria (tudo o resto igual) 103,7% do PIB ao invés de 98,7%. E que diferença faria? Seria menos sustentável? Franziria a Comissão o sobrolho?

Na sequência da bancarrota do início da década de 10 e dos anos da troika, a dívida pública ganhou uma carga irracionalmente negativa. Talvez tenha sido a influência alemã onde “dívida” e “culpa” são ambas “schuld”. Todavia, a dívida não é em si mesma má. Tudo depende do que se faz com ela. O endividamento português gerou problemas porque foi usado em consumo e não em gastos produtivos.  A regra de ouro das finanças públicas não é “contas certas”, mas emitir dívida apenas para financiar défices na conta de capital. Ou seja, emitir dívida para financiar investimentos do estado que se paguem a si próprios e não onerem o futuro. Bem pensado e executado, de mãos dadas com o setor empresarial, o investimento público pode complementar e potenciar o investimento privado, mesmo que se traduza num maior endividamento.

8 de fevereiro de 2024

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