Quem com eles nunca trabalhou, tende a assumir perante os modelos matemáticos uma de duas atitudes: indiferença ou aceitação beata. A primeira ignora a sua utilidade; a segunda as suas limitações.

Os melhores modelos matemáticos (melhores no sentido de mais úteis para compreender e prever aspetos não visíveis da natureza, do comportamento humano e da sociedade) caminham sempre num aguçadíssimo fio-de-navalha entre a simplicidade e o simplismo. Para serem manejáveis, os modelos ignoram deliberadamente muitos aspetos da realidade que o estudioso considera acessórios para o fenómeno em análise. Mas, fazê-lo, significa tomar como boas muitas hipóteses sobre o modo como o objeto do estudo se comporta. Se esses modelos algum dia chegarem ao conhecimento do grande público e tiverem relevância para a tomada de decisões, apenas as suas conclusões ou predições serão consideradas, raramente as hipóteses simplificadoras que as permitiram. Esquecemos, por comodidade ou por ignorância, que “quando entra lixo, sai lixo”.

Vêm estas reflexões a propósito dos inúmeros estudos epidemiológicos que ganharam popularidade na crise pandémica. Quotidianamente ouvimos e lemos termos arcanos como curvas de incidência, prevalência, CFR, IRF, taxa básica de propagação (R0), taxa efetiva de propagação, imunidade de grupo, entre muitos outros.

Desejo fixar-me num desses conceitos, o chamado limiar da “imunidade de grupo”, ou seja, a proporção mínima de da população que necessita de adquirir imunidade (por contágio ou por vacinação) para que incidência da infeção pelo vírus decresça e a pandemia soçobre naturalmente. Esse limiar tem uma relação matemática simples com o famoso R0 (o número médio de novas infeções por cada indivíduo infetado quando toda a população ainda é suscetível à infeção): 1-1/R0. Assim se o R0 para a Covid-19 for aproximadamente 3, o limiar de imunidade de grupo estará próximo dos 66%. Este é um valor enormíssimo: com uma a taxa de mortalidade do vírus entre os infetados que deverá não exceder os 0,5% isto levaria a prever a morte de 34 mil pessoas se a epidemia não fosse contida. Um número enorme que excede, por exemplo, os óbitos anuais por doenças do aparelho circulatório. Um tal cenário justificaria, por si só, um plano agressivo de contenção da propagação.

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Mas consideremos, agora, para além das conclusões as hipóteses onde são baseadas. A relação simples acima apresentada entre o valor de R0 e o limiar de imunização é, na realidade um teorema demonstrado nos anos 70 do século passado sob um conjunto de hipóteses muito restritivas designadamente, que a população é identicamente suscetível à doença.

A Professora Gabriela Gomes da Escola de Medicina Tropical de Liverpool chamou-nos a atenção para este facto numa importante entrevista ao Observador, mas que me parece ter passado despercebida aos decisores de saúde pública. A Professora e os seus colegas mostraram que, se considerarmos que alguns de nós são mais débeis e, portanto, mais suscetíveis, ou estão mais expostos (por exemplo por estarem em lares ou em atividades menos permeáveis ao teletrabalho), então esse limiar de imunidade de grupo ao SARS-CoV-2 pode ser alcançado com apenas 10 a 20% da população infetada. Significa isto que deveríamos esperar entre 5 mil e 10 mil mortes, um número sempre grande, mas que, na pior das hipóteses, é cerca de metade dos óbitos anuais por cancro. Neste cenário, dificilmente se justificaria, passada a fase “exponencial” pandemia, uma política de confinamento tão agressiva e com tantos custos económicos e sociais como a adoptada. Tomando como referência o “valor médio da vida” de 50 mil euros usado pelo STJ, o “valor” destas 10 mil vidas perdidas seriam 500 mil euros, 1/12 do custo em Rendimento Nacional de um mês de confinamento.

O propósito destas notas não é defender os resultados mais otimistas (eles também obtidos sob diversas hipóteses simplificadores). Antes, chamar a atenção para como medidas com elevados custos são tomadas por detrás de um cerrado nevoeiro de ignorância e incerteza. Tomando os casos extremos dos modelos referidos, o SARS-CoV-2 causaria (“naturalmente”) entre 5 mil e 34 mil mortes. Um intervalo demasiado amplo para ser útil! Contra esta incerteza só existe um remédio: melhores modelos e mais informação. Informação transparente e totalmente aberta sobre os modelos usados na tomada de decisão e obtenção de mais e melhores dados estatísticos sobre o estado da pandemia. Não deixa de ser curioso que, tanto tempo decorrido, não exista (ao que sei) um plano sistemático de testes serológicos de base amostral. Neste momento, a ferramenta que mais precisamos para gerir a crise pandémica não é clínica, mas sim estatística.