“Estou-me nas tintas” talvez queira dizer, à primeira vista, que a indiferença tomou conta de nós. Qualquer coisa da ordem da grandeza do “tanto se me dá, como se deu”. Ou do “tanto me faz que corra para a esquerda como para a direita”. “Estou-me nas tintas” talvez queira dizer que a vida talvez se tenha deixado de palmilhar a pé. Em função de palavras como esperança ou fé. Como utopia, amor ou alma ou ganas, simplesmente. “Estou-me nas tintas” talvez queira dizer que deixámos que as palavras se desencontrassem das asas. E que nos limitamos a ir. Andando.
A mim parece-me que este “vai-se andando” traduz a vida de quase todos nós quando ela se desencontra da poesia. E, quando é assim, estar nas tintas não traz a garra de dar à cor a hospitalidade das palavras. Isso seria estar com as tintas. Mas, antes, deixarmo-nos estar amalgamados em todas as tintas, numa ganga sem fim, até que elas deixem de ser um interminável Pantone e se resumam a um cinzento, com qualquer coisa de preto, que as engole e faz do seu casamento com a luz e com a cor um nevoeiro.
É estranha a forma como nos deixamos cair no “estou-me nas tintas”. E é, sobretudo, estranho quando se há alguma coisa que nos distingue e nos dá luz e cor isso mesmo é a palavra. A arte de pegar naquilo que se sente e dar-lhe voz. Juntar-lhe aquilo que se vê. Misturar as perguntas que isso traz. Até que tudo nos leve até um promontório. E, depois, que aí se deixe que a palavra voe. E vá. E acoste às palavras de outros. E, de conversa em conversa, tudo se misture com elas. E com isso se esculpam histórias. E, de voo em voo, a palavra regresse e parta e, incansável, volte e vá.
O busílis da palavra resulta da forma como a escutamos. Começando por ouvir os pensamentos que, por força da natureza humana, surgem soltos, em nós. E crescem e voam. Até os apanharmos. Ao contrário daquilo que parece, pensar não é o prodígio de arquitectar as palavras num juízo. Mas a arte de apanhar ideias e palavras. No ar!
Todavia, se a forma como a ciência opôs o número à palavra tomou conta de nós, o modo como, devagarinho, se evocam estudos científicos (na maior parte das vezes, mal-amanhados), cargas genéticas e proteínas, para justificar o pensamento, parece intimidar o território da palavra. Como se, no futuro, o pensamento fosse auto-controle e neurociências. E a palavra, unicamente, um circuito neural. E nunca o voo duma ave migratória. E a arte de abalar. Depois de, antes, de promontório em promontório, se apanharem as coisas no ar.
Nada mais errado! Somos muito mais que os pequenos ratos de laboratório desses estudos. Daí que essa “biologia da verdade”, que parece tornar-se numa grande muralha que se levanta conta a palavra, não tenha sentido. Apanhar as coisas no ar é, e será sempre, o meio-caminho com que se chega da palavra à poesia. Como se se fosse no dorso duma ave migratória e, depois de muitas histórias, se voltasse a casa. E, uma vez após a outra, de novo, se partir.
“Fugiu-me a palavra da boca” não devia ser, portanto, um ilícito. É, muito mais, um compromisso. Um “dou-te a minha palavra!”. O salto com que se vai da surpresa de um pensamento ao espanto e à poesia. A poesia, caso não pareça, é o promontório da ciência. A palavra a tentação de ter um pé no passado e o outro no incerto. E, no entretanto, ir sem destino. Mas ir! Voando.