“Um em cada três membros do staff da Casa Branca consome drogas regularmente. E não falo de aspirina”.

Como deve imaginar, esta afirmação é falsa. Ou melhor, não tendo disponível nenhuma fonte que a confirme ou desminta, o melhor que posso dizer é que não faço ideia se ela é verdadeira ou não. Mas esse não é o ponto desta reflexão.

Esta citação foi tirada do episódio “The Short List” da série americana The West Wing (em Portugal, Os Homens do Presidente). Quando a personagem do congressista republicano Peter Lillienfield a usa, tem como intenção manipular a opinião pública contra a equipa do presidente em funções, o democrata Jed Bartlet (iconicamente interpretado pelo ator Martin Sheen).

Não querendo revelar demasiado da história aos leitores que ainda não tiveram a feliz oportunidade de a ver, desvendo apenas que o enredo acaba por revelar que Lillienfield tem em sua posse a informação de que um dos membros séniores da equipa do presidente frequentou uma clínica de recuperação, anos antes de ser nomeado. Ao generalizar esta informação para “um em cada três membros do staff”, o congressista usa um dos truques mais antigos e mais comuns do livro do populismo: forçar o adversário a admitir uma verdade embaraçosa de modo a negar uma narrativa fraudulenta.

Apesar de se tratar de uma série de ficção, a estratégia retratada é frequentemente utilizada na comunicação política e é especialmente difícil de anular, porque tira partido de dois dos mais permeáveis viéses cognitivos: a ancoragem e a confirmação.

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O efeito de ancoragem retrata a influência que a fixação de uma ideia ou informação prévia tem no processo de tomada de decisão futura de um qualquer agente. Um exemplo prático e comum deste conceito pode ser encontrado no investidor que compra uma ação por 50 euros e se nega a vendê-la por 5, mesmo quando é evidente que a empresa em questão pode estar a caminho da falência. Ao fixar a sua perceção do valor da ação nos 50 euros, o investidor pode cair na armadilha de subvalorizar as pistas da realidade e sobrevalorizar aspetos menos tangíveis (e confiáveis) como o otimismo ou a sorte.

É, também, este viés que leva os especialistas em negociação a aconselhar que, por exemplo, numa discussão salarial, seja o trabalhador o primeiro a propor um valor de remuneração. Será sempre muito mais provável ficar satisfeito com o resultado do debate se o fixar, desde o início, ao seu valor de referência.

Sempre que são levantadas suspeitas sobre o caráter de um indivíduo ou de um grupo, aumenta-se a probabilidade de a ancoragem ser aproveitada como um instrumento de manipulação política. São vários os casos da nossa história (não tão) recente de figuras públicas que foram alvo de investigações e que, apesar de se concluírem inocentes, nunca foram capazes de abandonar a âncora a que foram associadas. Como a presunção de inocência parece ser pouco eficaz contra este efeito, é aconselhado o maior cuidado aos intervenientes do debate público.

Regressando ao exemplo da série, é este efeito que leva a equipa de comunicação da Casa Branca a assumir que não é possível ignorar a acusação feita pelo congressista, por muito absurda que ela possa parecer. Ao fixar a ideia de consumo de drogas por parte de membros do staff da Casa Branca, o republicano força a equipa do presidente a apresentar uma negação categórica da acusação. O problema é que tal exercício esbarra com outro perigoso viés congnitivo: a confirmação.

Adoramos encontrar informação que valide ou reforce as coisas em que acreditamos. Detestamos a que contraria as nossas crenças, mesmo quando suportada em factos e dados concretos. É por isso que estamos constantemente à procura da primeira e a tentar evitar a segunda. E é por isso que não devemos confiar no nosso cérebro.

De volta ao episódio de The West Wing, quando a equipa de comunicação do presidente se junta para planear uma contra-ofensiva perante as alegações do congressista republicano, surge o dilema: ou ignoram (o que, como já vimos, não é possível) ou negam a acusação, suportando-se em resultados de uma extensa e criteriosa investigação. No entanto, tendo o staff da Casa Branca cerca de 1300 pessoas, a probabilidade de se verificar, pelo menos, um teste positivo a um eventual exame toxicológico não estaria, nas palavras da pragmática assessora de imprensa CJ Cregg, “fora do reino da possibilidade”. E apenas um caso positivo seria tudo o que a acusação precisaria para ver reforçada a perceção de que “os membros do staff da Casa Branca consomem regularmente drogas”. Não interessa que seja “1 em 3” ou “1 em 1300” – o viés da confirmação assegurar-se-á de que uma parte significativa da opinião pública se focará apenas no caso positivo para validar uma opinião formada aquando do momento da ancoragem.

O viés da confirmação entra em ação sempre que destacamos o “frango” do guarda-redes de quem não gostamos, mesmo que tenha defendido 30 remates dificílimos no mesmo jogo. Ou sempre que alguém ignora o relatório do Observatório das Migrações que conclui que os imigrantes em Portugal foram responsáveis por um saldo positivo de 1600 milhões de euros em contribuições para a Segurança Social, decidindo focar-se num qualquer caso específico que confirme uma crença contrária à que é relatada pelos factos.

Em 2024, haverá mais de 70 nações a realizar algum tipo de votação, sendo que só na Europa, há 13 países com eleições previstas. Em Portugal, com a campanha eleitoral a entrar na fase dos debates, que se espera mais esclarecedora do que os meses que a antecederam, é essencial que estejamos preparados para reconhecer e desmontar as falácias pelas quais seremos inundados e que treinemos os nossos cérebros para resistir às ancoragens, confirmações e restantes vieses.

Ao escrever esta reflexão, notei que o episódio que menciono nestas linhas foi transmitido pela primeira vez em 1999. Depois da chocante conclusão de que já se passaram quase 25 anos, apercebi-me de que o populismo e as suas armas e estratégias já existem há tempo suficiente para estarem amplamente retratados na literatura, no cinema e na televisão. Acredito que os próximos meses sejam uma boa oportunidade para mergulharmos neste tipo de conteúdo. Se não souber por onde começar, The West Wing é uma excelente opção.