«Duende». Espírito fantástico, sobrenatural, que desponta fingidamente em noites sombrias, para devassar casas e lugares adormecidos. Espírito da Natureza, que habita silenciosamente bosques e montanhas. Espírito supremo e criador, que invade a alma de pintores, músicos e poetas, concedendo-lhes o inefável e misterioso dom da arte e da imaginação.

O termo, cujos primeiros registos remontam ao ano de 1221, descende da expressão castelhana dueño de la casa (dono da casa). Como ensina o filólogo catalão Joan Coromines, no Breve Diccionario Etimológico de la Lengua Castellana, trata-se da «contracção de duen de casa […], locução cuja primeira palavra é a forma apocopada de dueño». (Apócope: supressão de letra ou sílaba no final de um vocábulo.)

Entre nós, a palavra foi inscrita no secular Vocabulario Portuguez, e Latino, do padre D. Raphael Bluteau, com o significado de «Espírito, que infecta algumas casas, ou lugares, aparecendo com corpo fantástico, revolvendo, perturbando, fazendo peças, pondo medo […]». Defendendo a génese castelhana, o clérigo regular teatino refere que os duendes «se fazem Dueños, ou senhores das casas», não havendo «quem queira viver onde eles aparecem».

D.  Raphael Bluteau, nascido em Londres no ano de 1638, dedicou grande parte da sua vida ao estudo da língua portuguesa e à missão de provar a riqueza e profusão desta. O seu invulgar conhecimento, que se não cingia às humanidades, foi moldado em prestigiadas academias europeias: Verona, Roma, Paris. Chegou a Portugal em 1668 e cedo se aproximou de nobres influentes e da corte. Abraçou o Iluminismo e estudou a Terra e os astros. Os oito volumes e dois suplementos da referida obra, publicados entre 1712 e 1728, foram dedicados a D. João V. Mais tarde, em 1798, António de Morais Silva reformaria esta inigualável herança. Nascia assim o Diccionario da Lingua Portugueza — e ainda a lexicografia moderna.

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Poslúdio de inúmeras mutações tecidas em fábulas milenares, a palavra «duende» foi criada para designar uma figura da mitologia europeia pré-cristã, com aspecto humano e incontáveis valências. Os duendes — espíritos pagãos tão amados como temidos — podiam executar tarefas caseiras, cuidar das crianças e até ajudar os artesãos nos respectivos ofícios.

Na Noruega, acreditava-se terem os duendes criado o Sol. Por seu turno, os islandeses associavam-nos aos antepassados e atribuíam-lhes o dom de curar doenças. Segundo a tradição nórdica, os duendes eram ainda encontráveis nas caçadas de Odin, deus da sabedoria e demónio das tempestades. Odin percorria a terra, o ar e os infernos num cavalo mágico de oito patas (Sleipnir) e governava os humanos no trono de Valhalla: palácio de infinitas e gigantescas portas — com tectos feitos de escudos e paredes revestidas de espadas — que acolhia guerreiros mortos em combate, como reconhecimento pela sua nobreza e valentia. Os heróis eram levados do campo de batalha pelas Valquírias, divindades escandinavas ao serviço de Odin, e recebidos nos umbrais da eternidade por Bragi, poeta escaldo que se tornou deus da música e da poesia depois da morte. Em O Anel do Nibelungo, ciclo de quatro óperas épicas escritas por Richard Wagner entre 1848 e 1874, Odin é um dos que disputam o anel mágico, fonte suprema de poder, forjado com ouro do Reno pelo nibelungo Alberich. Dificilmente, terá J. R. R. Tolkien ignorado a obra-mestra do compositor alemão quando inventou a Terra Média e a pletora de feitos e desventuras que nela ocorreram.

Noutro quadrante, além-mar, um duende feiticeiro e invisível habita a imensa floresta amazónica e tem o poder de causar dores no corpo às mulheres.

Mais a sul, um poeta-duende saído da pena de Horacio Ferrer e do bandoneón de Astor Piazzolla narra a história de María de Buenos Aires: mártir, santa e bruxa cantante, cuja sombra se dilui no tango e na cidade. Em ruas e bairros tão pungentes como fatais, asfaltados de mistério, surrealismo e sedução, María de Buenos Aires depara com velhos ladrões, profetas loucos, marionetas, bonecas de trapos e até um coro de psicanalistas. E nesse cenário pálido e trágico, ao som de campanas que dobram como corações atormentados, chora e morre pela primeira vez.

Na Andaluzia, onde ventos áfricos aspergem um perfume roubado ao Sul, vulcanizando as paixões e o flamenco, a palavra libertou-se dos mitos e passou a exprimir uma energia inebriante que se liga à dança, música e poesia. Nesse solo fervente, em cada beco gasto ou bulevar, irrompe um espírito, um feitiço, que se apodera inapelavelmente de certos artistas e se aloja no âmago da sua criatividade, criando raízes longas e inamovíveis.

Em 1933, poucos anos antes de sucumbir a uma guerra civil sanguinária e fratricida, inocentemente fuzilado no seu próprio chão em Granada, Federico García Lorca anunciou ao mundo a metamorfose andaluz. No ensaio Jogo e Teoria do Duende, escrito a bordo de um navio transatlântico e lido numa conferência em Buenos Aires, o autor discorre sobre as diferenças entre anjo, musa e duende: «anjo e musa chegam de fora; o anjo dá luzes e a musa dá formas». Quanto ao duende, para o qual «não há mapa nem treino», refere «ser um poder e não um executar, […] um lugar e não um pensar». O poeta sustenta que «nenhuma emoção é possível sem a chegada do duende» e que «todo o homem, todo o artista, chame-se Nietzsche ou Cézanne, qualquer escada que suba na torre da sua perfeição é o preço da luta que trava com o seu duende». (O texto foi acolhido na obra Anjo e Duende, editada pela Assírio & Alvim, com tradução de Aníbal Fernandes.)

As suas palavras seriam mais tarde respigadas por Nick Cave, também ele acometido desse espírito emboscado que ataca à traição, fazendo do espanto e do assombro o golpe e a bala perfeitos. Em The Complete Lyrics 1978-2022, depois de trazer à lembrança a portuguesa «saudade», que define como «enigmático anseio da alma» e «desejo de ser conduzido da escuridão à luz», o australiano evoca o poeta de Granada e reflecte sobre a música contemporânea. Para Nick Cave, a «compulsiva modernidade» e a «histérica tecnocracia» não se compatibilizam com o duende, que «precisa de espaço para respirar», nem tão-pouco com a melancolia, «que odeia a pressa e flutua no silêncio». (Tradução nossa.)

Como pressagiava García Lorca, todas os países têm «capacidade de duende». Têm duende Estrella Morente e Vicente Amigo, que carregam a herança andaluz e a missão de perpetuar a diáspora e o flamenco: infinita alquimia de notas persas, melodias hindus, cantos gregorianos, salmodias gregas, versos mouriscos, endechas judias. Tem duende Tom Waits quando, inquietado, se despede de Matilda e da madrugada em Tom Traubert’s Blues. Tem duende Björk, que transforma canções em vívidos caleidoscópios de excentricidades. Tinha duende Elis Regina sempre que evocava as irreverências de um bêbedo enlutado que lhe lembrava o descompasso de Charlie Chaplin, ou tão-só quando vaticinava as chuvas de Março e o fim do Verão. Tinha duende Ryuichi Sakamoto, a quem o Oriente confiara o som e o silêncio. Tinha duende Glenn Gold, mensageiro de Bach e Orfeu. Tinha duende Maria Callas, nascida da conspiração de deuses olímpios e por estes elevada ao panteão.

As raízes da alegoria conduzem-nos ao universo de Paracelso, médico e alquimista dos séculos XV e XVI, que deambulava entre minuciosos ensaios científicos e arcanos jamais decifrados. No tratado Liber de Nymphis, Sylphis, Pygmaeis et Salamandris et de Caeteris Spiritibus, escrito para louvar os prodígios da Natureza e ancorado no platonismo, o mago suíço une cada um dos elementos primordiais a um ser imaginário com características humanas.

O sopro andaluz vive na criatividade e na imaginação, como as ondinas na água, as salamandras no fogo, os gnomos na terra e as sílfides no ar. Evadido de contos ancestrais, o duende é o clarão que acorda florestas olentes em manhãs de nébula, o feitiço que surde em ruas ensombradas por tangos e milongas, o nume que invade arcadas góticas e praças luminosas imersas em sevillanas e bulerías.

            Antídoto da máquina e do ardil, o duende é essência nunca imaginada, a partícula nunca descoberta, o espírito misterioso e velado que prefere a arte à razão.