Ao longo dos últimos meses, fomos ouvindo vezes sem conta que o Serviço Nacional de Saúde era elástico, era flexível, que conseguiria suportar todas as adversidades. Assim o foi na primeira vaga, assim continua a ser na segunda. Mas a troco de quê? Dos seus profissionais. E foram estes profissionais que foram elásticos e flexíveis, e foram-no graças a um altruísmo inexcedível, que lhes permitiu, mesmo em condições adversas, garantir a continuidade dos cuidados, do serviço e do sistema nacional de saúde.
E digo altruísmo, porque, efetivamente, não houve nada em troca, tirando o vencimento ao final do mês, mas esse mantém-se ao longo dos anos congelado, inalterado. Com a pandemia, tornou-se um vencimento a troco de uma maior carga de trabalho, maior risco, menos condições.
As promessas de reconhecimento social dos profissionais continuam a ser vãs: de enfermeiros, médicos, assistentes operacionais e tantos outros técnicos. A única que foi concretizada foi, efetivamente, as palmas e essas vieram do cidadão, de que sem dúvida importa o reconhecimento, porque é dele que depende também o desagravar deste contexto, deste período conturbado que vivemos.
Mas urge reconhecer os profissionais, urge colocar mais do que pensos rápidos nas feridas já crónicas que assolam o Serviço Nacional de Saúde. Ao contrário de outros congéneres europeus, as nossas “compensações”, como a Liga dos Campeões, como este pequeno subsídio (que tarda em ser pago), não retratam de todo o esforço e dedicação até aqui colocados. E quando assim é, por vezes o cenário torna-se negro, veja-se o caso da Suécia.
Porque para estes profissionais não houve férias, não houve folgas, não houve, em tantos casos, possibilidade de mudar de emprego mesmo que fosse para outro hospital, e todos acataram por um bem maior, com a expectativa que depois desta emergência se reponham estes direitos consagrados.
Desengane-se também quem acha que a pandemia, pelo seu enorme impacto, veio colocar sob stress o Serviço Nacional de Saúde e tornar aparente a sua falta de profissionais. Este stress é constante, com picos obviamente, que acontecem regra geral na altura do inverno, mas cujos problemas são sobejamente conhecidos – seja a falta de camas, a falta de recursos materiais e, mais importante que tudo, a falta de recursos humanos.
Ano após ano, os profissionais aumentam a quantidade de horas extra realizadas, com uma expectativa de melhoria das suas condições, mas, acima de tudo, com a certeza que têm de continuar a cuidar dos seus utentes. E mesmo quando é necessário reivindicar direitos, mesmo quando se realizam greves, os utentes não ficam por cuidar, os cuidados mínimos são assegurados, tantas vezes sem que o utente se aperceba, porque nada fica por fazer.
E é este altruísmo que vai permitindo que o Serviço Nacional de Saúde se mantenha flexível, mas não por muito tempo. Eventualmente, chegará a altura em que a corda rebenta e em que assistiremos à debandada de profissionais e a uma descapitalização de um recurso que é das maiores conquistas das últimas décadas, de um recurso que é amplamente reconhecido pelos seus indicadores, pelo que conseguiu construir.
Aliamos, assim, uma perda de capital intelectual a uma dificuldade de reter talento pois, por mais que qualquer profissional queira vestir a camisola, é inevitável não fazer contas no final do mês, é inevitável ponderar que as palmadas nas costas e as palmas à janela não garantem melhores condições para o futuro, nem garantem a estabilidade emocional que um trabalho na saúde, nos dias de hoje, é incapaz de garantir, pois hoje, mais de metade dos profissionais de saúde demonstra sinais de burnout, de stress.
Nos próximos meses manter-se-á esta pressão, com a exigência de vacinar toda uma população, sem comprometer o que já foi conquistado até aqui e, mais uma vez, os profissionais de saúde terão de desempenhar as suas funções de forma exemplar.
Simultaneamente, começará o regresso à normalidade no contexto de saúde, com uma agravante: o esforço acrescido para recuperar o tempo perdido – consultas, cirurgias, tratamentos, entre tantas outras intervenções. E continuaremos a ter os mesmos profissionais, que entre um período de inverno e uma pandemia, irão deparar-se com outra vaga enorme: a de voltar a recolocar a saúde dos Portugueses no caminho certo. Mas continuaremos a apregoar que temos os melhores profissionais e um dos melhores serviços de saúde do mundo e todos os dias colocaremos a questão: até quando?