A abrir a edição 2719 do Jornal Expresso, de 06-12-2024, em artigo de opinião do seu Diretor, João Vieira Pereira, destacava-se, e passo a citar: “Na última década houve uma aposta clara no reforço do emprego público que menosprezou a necessidade de uma discussão sobre que funções deve o Estado desempenhar perante as necessidades atuais e futuras”.
Através do Decreto-Lei n.º 43-A/2024 e Decreto-Lei n.º 43-B/2024, ambos de 2 de julho, foram aprovadas medidas relevantes no âmbito da célebre reforma do Estado.
O primeiro diploma procedeu a uma alteração das normas a que deve obedecer a organização da administração direta do Estado, assinalando que com as alterações introduzidas, o Governo “confere à Administração Pública critérios para a tomada de decisões organizativas e as alternativas de organização e de funcionamento que melhor garantem e potenciam a unidade e coerências decisórias, bem como a eficiência e a eficácia do desempenho das tarefas que cabem ao Estado”.
Quanto ao segundo, aprova a orgânica da Secretaria-Geral do Governo e o modelo organizativo a adotar pelas entidades com responsabilidade em matéria de estudos e planeamento. De acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 43-B/2024 «esta é também uma das reformas relevantes no contexto do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) dirigido à Administração Pública – componente C19 “Administração Pública – Capacitação, Digitalização e Interoperabilidade e Cibersegurança”. Nela se prevê uma abordagem sistémica e multidimensional, que visa distinguir no funcionamento do Estado dois tipos de organismo: (i) os de suporte, isto é, aqueles que “produzem” para o Estado; e (ii) os de missão, ou seja, aqueles que “produzem” para o cidadão». Neste âmbito, através do Despacho n.º 13583/2024, de 18 de novembro de 2024, foi criado o Grupo de Trabalho da Gestão de Mudança e Comunicação para a Reforma da Administração Pública, com a missão de “conceber, analisar, propor, implementar e avaliar a melhor abordagem e as iniciativas em termos da gestão de mudança e comunicação no âmbito da Reforma AP, na dependência da Secretária de Estado da Administração Pública”.
É inadiável repensar a dimensão atual do Estado, considerando, desde logo, dois tópicos essenciais.
Por um lado, a Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 123/2022, de 14 de dezembro de 2022, determinou a transferência, a partilha e a articulação das atribuições dos serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado nas comissões de coordenação e desenvolvimento regional. A parte introdutória da RCM justifica que uma “política nacional de desenvolvimento regional terá de considerar o conjunto do território do país numa ótica relacional, levando em consideração, de forma integrada, as potencialidades, as capacidades e as limitações das várias regiões e sub-regiões, promovendo a racionalização do processo de tomada de decisões organizativas; o aprofundamento da governação democrática; a formulação de políticas públicas mais ajustadas à diversidade territorial existente; e a melhoria da prestação de serviços públicos aos cidadãos. O reforço do papel das CCDR trará, neste contexto, as vantagens de um Estado mais próximo, de estratégias regionais mais adequada e o reforço de uma escala de respostas públicas adequada a um contexto de mudanças tecnológicas acentuadas, de perda de população, de necessidade de se fazer a dupla transição, climática e digital, entre outras”. Assim, através do Decreto-Lei n.º 36/2023, de 26 de maio, procedeu-se à conversão das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR, I.P.) em Institutos Públicos, tendo o Governo aprovado a integração de serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado nas CCDR, I.P., concretizada através de uma alteração à sua orgânica, com uma redefinição estratégica no que diz respeito à missão e atribuições das CCDR.
Por sua vez, admitindo que as autarquias locais são a estrutura primária para a gestão de serviços públicos com caráter de proximidade, a Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto, estabeleceu o quadro da transferência de competências para as autarquias locais e para as entidades intermunicipais, em consagração do princípio da subsidiariedade, colocando a descentralização administrativa como base da reforma do Estado. No seguimento, foram publicados os diplomas de âmbito setorial que efetivaram a transferência de competências em diversos domínios de atuação do Estado, incluindo as áreas da saúde, educação, cultura, justiça, proteção civil, habitação, cultura, estacionamento público, promoção turística, captação de investimento e gestão de fundos europeus, praias marítimas, fluviais e terrestres, vias de comunicação, infraestruturas de atendimento ao cidadão, saúde animal e segurança alimentar, património e habitação.
Aqui chegados, impõe-se a pergunta: qual o modelo de Estado que queremos no futuro? Com a nomeada transferência de competências para as CCDR, autarquias locais e entidades intermunicipais, a incontornável revolução digital em curso, e o reconhecimento das potencialidades da inteligência artificial para agilizar a prestação de certo tipo de serviços públicos, não podemos continuar a alimentar a ilusão de que é exequível manter o número de trabalhadores em funções públicas afetos a determinadas áreas de atividade, que já revelam níveis de sobreposição, e inevitavelmente, no curto/médio prazo, se tornarão redundantes. Preservando a clarividência necessária para não ceder ao ruído associado ao debate ideológico nas questões que se prendem com o emprego público, é preciso ponderar seriamente o disposto no n.º 2 do artigo 276.º do Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, quando permite a redução do período normal de trabalho, ou então a suspensão do vínculo de emprego público, através da celebração, entre trabalhador e empregador público, de um acordo de pré-reforma.
A valorização e dignificação profissional dos recursos humanos na administração pública pressupõe, desde logo, uma remuneração adequada às exigências da função desempenhada, que se requer superior para funções dirigentes e/ou equiparadas com elevados níveis de responsabilidade na gestão da “coisa pública”, bem como para os recursos humanos mais qualificados em áreas específicas do conhecimento. E parece-nos óbvio que este cenário só será viável quando a dimensão do Estado se ajustar às suas necessidades atuais e futuras, mapeadas com coerência e rigor, e não apenas com base em interesses eleitoralistas e/ou de concessões a clientelas político-partidárias. A não ser assim, os melhores jamais terão qualquer interesse em ingressar na Administração Pública, e de colocar o seu know how ao serviço do interesse público e do desenvolvimento do país (infelizmente, assistimos progressivamente a um movimento contrário, em que os mais habilitados tendem a sair do setor público, pela oferta de condições de trabalho bem mais atrativas no setor privado).