Imaginemos uma economia tribal fechada ao exterior – como o planeta o é – que por insuficiência de conhecimentos técnicos necessita dedicar 100% do seu tempo à recolha de alimentos apenas para sobreviver. Um dia, por via de uma ideia brilhante do até aí maluco da tribo, 10% das pessoas passa a dedicar-se a produzir ferramentas nunca antes vistas (os primeiros bens de capital) com a vaga esperança de quando terminadas a sua utilização resultará em menos horas-de-trabalho na recolha dos mesmos alimentos.

Para tal ser sequer possível será necessário, por diminuição do consumo diário, o armazenamento prévio de alimentos suficientes a sustentar os 10% que deixaram de recolher os seus próprios alimentos durante o tempo de construção. Se o plano for bem-sucedido, por hipótese, apenas 90% das pessoas passam a ser suficientes para recolher a mesma quantidade de alimentos que anteriormente para alimentar a totalidade da população. E assim 10% poderá então dedicar-se à produção de um vestuário de maior qualidade, quem sabe, prevenindo a incidência de males vários.

Todos serão então economicamente mais ricos no sentido de terem acesso, empregando o mesmo número de horas de trabalho, a um maior número de bens: a capacidade de recolha da mesma quantidade de alimentos necessários à totalidade da população e uma quantidade até aí inexistente de vestuário e e ferramentas. Para além do engenho técnico foi necessária uma decisão consciente de adiamento da satisfação imediata materializada no menor consumo diário de alimentação durante um determinado período de tempo, permitindo o seu armazenamento, por troca da promessa de um maior estado de satisfação no futuro.

Numa ordem social um pouco mais complexa, onde a especialização do trabalho se dá por iniciativa individual e as trocas são voluntárias, existiriam no mesmo plano 10% de pessoas dedicadas à tecelagem e 90% à agricultura e pecuária.

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Os rácios a que uns trocarão os seus produtos por outros dependerão das preferências subjectivas concretizadas pelas partes: X prefere a posse de 10 Kg de maçãs recolhidas por Y a (pelo menos) uma túnica por si mesmo produzida, Y prefere uma túnica produzida por X aos (pelo menos) seus 10 Kg de maçãs. Só esta desigualdade explica que a troca voluntária tenha lugar representando, pelo menos ex-ante, um acréscimo de bem-estar para ambos.

O aprofundamento da especialização do trabalho e troca tenderá a revelar múltiplas vantagens comparativas fornecendo oportunidades de produção para todos. Princípio que vale tanto para as trocas internacionais como para as inter-pessoais. Bill Gates em tese poderia realizar um trabalhado mais eficiente em qualquer uma das tarefas necessárias na Microsoft mas a sua especialização numas propondo a terceiros a execução de outras permite uma mais eficaz prossecução do mesmo fim do que se tentasse realizar sozinho todas as tarefas.

Na presença de um número suficiente de trocas directas emergirão alguns bens aos quais lhes é conferida uma expectativa crescente de servirem unicamente para trocas futuras até que alguns desses bens atingem a sua utilidade máxima e única como meio de troca (moeda) e não como bem de capital ou bem de consumo – caso da prata e do ouro. Ponto em que, tornando-se observáveis os rácios de troca praticados, ou seja os preços, irão permitir o cálculo económico expandindo ainda mais as possibilidades de especialização e troca.

Numa economia monetária o capital inicial destina-se em primeira ordem a tornar possível o pagamento de salários que para todos os efeitos constituem um adiantamento por conta de receitas futuras e ainda incertas. Em especial durante o período em que um novo processo produtivo é deficitário dado que este só obterá receitas monetárias em excesso dos custos não-laborais num dado horizonte temporal. O qual em casos de processos de capital intensivo pode significar vários anos. Esse capital inicial só está disponível graças à obtenção prévia de um excesso de receitas sobre a despesa por empresas (lucros) e/ou indivíduos e famílias.

O crescimento económico concretiza-se assim pelo sucesso no meio de inúmeros insucessos de processos de poupança-investimento que resultam na diminuição sucessiva do número de horas de trabalho para obter a mesma produção anterior permitindo o acréscimo de produção adicional com as horas de trabalho que foram poupadas. Tal revelar-se-á na diminuição de custos e preços de determinados bens de consumo resultando essa poupança monetária na possibilidade de despesa adicional nessa tal produção adicional.

Reparar que uma contínua descida de preços nominais devido a aumentos de produtividade representa um aumento de salários reais sem que se torne necessária qualquer reivindicação salarial individual ou colectiva por aumentos nominais tornando perceptível a todos a melhoria geral das condições de vida. Ter em conta também que a redução de preços em bens de consumo beneficia mais os menores rendimentos. Já um aumento anual de “apenas” 2% dos preços, objectivo atribuível a vários Bancos Centrais, induz à tensão social por reivindicações só para ser garantida a manutenção do poder de compra.

Se a actividade económica gerar e aplicar uma menor poupança em novos processos por unidade de tempo o ritmo de aumento do poder de compra dos salários será menor. Mas em última análise o que determina o equilíbrio entre a decisão de uma satisfação imediata e o seu adiamento dada uma expectativa do seu aumento no futuro é a preferência temporal materializada no juro monetário.

Por exemplo, as crianças têm uma alta preferência temporal sendo muito difícil escolherem o adiamento de uma satisfação imediata (um gelado) mesmo sendo prometida uma substancial maior satisfação no dia seguinte (dois gelados) – está aqui implícita a exigência de um juro elevado (o gelado adicional). A uma menor preferência temporal corresponderá a exigência de um menor juro. Mas esta preferência temporal não tem origem sequer na presença de moeda. Resulta da simples preferência por atingir o mesmo fim antes do que depois valorizando-se assim os bens presentes acima dos futuros e cujo rácio corresponde à taxa de juro.

Não cabe a economistas a escolha entre uma maior ou menor poupança por unidade de tempo que determinará a possibilidade de um maior ou menor ritmo de melhoria do poder de compra dos salários. Esta resulta sim do confronto entre preferências temporais individuais estabelecidas quer no mercado de crédito ou capitais quer na exigência de um acréscimo de preço (uma forma de juro) em cada um dos sucessivos estágios de produção desde a fabricação de bens de capital até aos bens de consumo final.

Claro que numa economia complexa e na presença do agente Estado, factores institucionais como o grau de colectivização da produção, o aparato regulatório e fiscal e em última análise a estabilidade e segurança de direitos de propriedade (quer patrimonial quer dos salários e outros rendimentos) ou ainda a presença de distorções várias a favor de uns grupos e criando barreiras artificiais a outros – o chamado corporativismo de Estado – podem conduzir à travagem da progressão económica substancialmente abaixo do que a preferência temporal das pessoas o determinaria.

Hoje, cerca de mais de 40% do produto económico medido pela despesa total do Estado não só não tem como fim gerar poupança (lucros) como não está sujeito à turbulência de ajustamentos de dimensão de actividade determinadas por receitas voluntárias e nem da estrutura do seu financiamento de capital.

E é aqui que podemos encontrar causas para crescimentos anémicos e à percepção de um jogo de soma nula onde podem despontar crises sociais muitas vezes idiossincráticas onde a igualdade é atiçada contra os incentivos à formação de capital – uma das fontes se não a principal para o crescimento do poder de compra dos salários. E isto ainda sem ter em conta os ciclos económicos que resultam da distorção dos juros a favor de uma aparente saúde económica no curto prazo sinalizando erroneamente possibilidades de investimento e consumo insustentáveis a longo prazo tornando as crises correctivas, mas dolorosas, inevitáveis.

Assim, até a economia pura consegue apontar factores críticos merecedores da nossa atenção prática: a qualidade da moeda como meio de troca e unidade de conta, o crescente peso de produção não geradora de poupança (lucros) e a interferência na formação dos juros como expressão de uma preferência temporal.