A liberdade não é um meio para um fim político superior. Por si só, é o mais elevado fim político. (Lord Acton)

O ceticismo quanto à bondade de decisões governamentais, no âmbito económico ou individual, será sempre um elemento caracterizador de quem preza a liberdade como o último dos fins políticos. Não é de estranhar, só por essa simples razão que, na conjuntura atual de “estado de emergência” permanentemente renovado, autorizado pela Assembleia da Républica, sob proposta do Governo e com o beneplácito do Presidente da República, o repúdio dos libertários – um movimento político nascido em continuidade do liberalismo clássico ao qual se juntam outras tradições e movimentos vanguardistas posteriores – por tal medida seja total.

Por uma razão simples: está em causa a capacidade das pessoas fazerem escolhas quanto às suas necessidades concretas de manter a continuidade do seu salário ou dos seus negócios. Escolhas tomadas perante uma sobredose de informação e até algo panfletária do medo – com evidentes efeitos psicológicos negativos em alguns ou até em cada um de nós – com a marca que esta pandemia “é um problema de todos” e, portanto, que tem de existir uma resposta coletivamente coordenada semelhante à de um formigueiro onde cada um se sujeita a um papel pré-determinado como que pela biologia ou instinto, ou no caso, por um absolutismo da vontade geral. De resto, para alguns parece ser o plateau último existencial e por isso estes tempos parecem-lhes quase providenciais, tentando-se uma manobra de reinvenção económico-social para o futuro.

Mas como é norma, não é tudo assim tão simples mesmo no campo do utilitarismo e eficácia das medidas e não dos princípios. Como é (deficientemente) reportado desde Março de 2020, o excesso de mortalidade relevante recai sobre os mais idosos – e quase poderíamos traçar uma fronteira aproximada na idade de reforma que se torna relevante para abordagens alternativas possíveis, dado perfazerem o conjunto de população não ativa – a quem não se viu providenciar uma mobilização realmente de exceção com protocolos de isolamento rígidos a quem os solicitasse. Pelo contrário, há, por exemplo, todos os sinais de terem existido ou existirem problemas vários em lares de terceira idade dada a alta prevalência de casos e mortalidade. Não esquecer a tragédia dos idosos que faleceram em Reguengos de Monsaraz por alegada desidratação dada a ausência de cuidados e porventura originada numa exagerada perceção de risco pelos intervenientes mais diretos. Obrigado media e especialistas.

Simultaneamente, a gestão da capacidade de resposta não parece ter sido especialmente funcional. E, note-se, que por esta altura podemos agora reavaliar como desadequadas a visão catastrofista entre Março e Abril, dado terem triplicado (comparando os picos de internamentos) nesta onda de Dezembro a Fevereiro. Sintomático como fenómeno de comunicação e perceção coletiva: o que parecia um grau de problema relativizado apenas por a quem muitos classificaram na primeira onda como “negacionistas”, acaba a ser relativizado pela própria realidade mais tarde. O que deve levar a uma atitude de permanente reavaliação crítica da nossa perceção coletiva, menos reativa a imagens e comunicação que tem muito de – mesmo que não intencionalmente – populista, para melhor compreender a eficácia de decisões que nos obrigam a todos.

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Impor um confinamento geral é uma inutilidade para aqueles que acham que se devem confinar, por razões de saúde física ou psicológica, na medida em que já o fariam mesmo que não houvesse uma Deliberação do Conselho de Ministros. E é, simultaneamente, uma violação da liberdade para aqueles outros que, não aceitando a vida vegetativa que o Governo e o consenso de quem nada arrisca lhes pretende impor, por conta de uma ameaça que têm o direito a percecionar como insuficiente para não circularem na via pública ou não manterem o seu comércio aberto.

O isolamento é também uma escolha, assim como é a de maior ou menor circulação no espaço público. É uma decisão tácita de mútua responsabilidade – um risco assumido e partilhado. Não é assim tão descabida a imagem dos riscos incorridos numa relação sexual, que poderá ser mais ou menos cuidada ou protegida em tempo de prevalência de transmissão de doenças infeciosas (como no passado recente ou até ainda presente) e cujo risco passa a ser literalmente partilhado por ambos no próprio consentimento do ato. A circulação pública e em locais de comércio pode também ocorrer com mais ou menos cuidados como a proteção alegada de máscaras e distanciamento. O que parece estranho, é contrastar a gravidade assumida com a necessidade de ameaçar com sanções para o próprio bem das pessoas. Talvez o risco seja tolerável para uma boa parte da população como, de resto, tudo parece indicar que seja o caso. A reação desproporcionada de intolerância a qualquer grau de risco por uns, não tem direito, por si só, de se impor a quem não a tem e pouco vale aquele apontar em último recurso autojustificativo ao grupo de risco, porque nunca se sentiu uma preocupação dirigida a estes nas medidas e apesar das estatísticas mostrarem claramente quem arca com a mortalidade desde o início.

Proibir atividades económicas é uma utilidade para aqueles que têm o seu rendimento assegurado, independentemente do valor que acrescentam, na medida em que ficam dispensados do aborrecimento de terem de se deslocar, mas é, também, simultaneamente, uma imposição de miséria para aqueles que têm de fazer pela vida para se sustentarem a eles e àqueles que têm, via receita fiscal ou dívida pública ou pertencendo a certos sectores privados, o seu rendimento assegurado. E são estes que têm, de certa forma, apoiado a confinocracia presente. Um problema de assimetria de incentivos com proveitos próprios (a sua própria perceção de menor risco) com custos (para já) alheios.

Um direito básico de circulação não pode estar dependente da maior ou menor lotação esgotada de um serviço de saúde, mesmo um com alta criticidade e cujo aumento de capacidade, se é assim tão estruturante, não parece ter merecido a atenção suficiente, incluindo o de coordenação com o sector privado. Mais uma vez, esta desatenção parece decorrer da distração com o “é um problema de todos”: testes massivos a sintomáticos e a não sintomáticos, idosos e crianças – a que se adiciona a esperança não demonstrada que as pandemias com estas características podem ser controladas.

Por último, somos postos perante a evidência empírica de países ou Estados onde o restricionismo é muito leve (ex.: Suécia e Flórida), ou até quase ausente (ex.: Dakota do Sul), onde a evolução da pandemia revela o mesmo padrão de início, pico e depois queda de casos e mortalidade. Tal como em locais de grande incidência não se fecharam escolas (ex.: Bélgica). São, assim, crescentes os sinais que esta pandemia, a somar ao que se sabia pré-Covid, pertence mesmo à categoria do incontrolável fazendo, em última análise, parte da difícil e muitas vezes trágica condição humana na ausência de vacinas que felizmente agora estão disponíveis – obrigado a todos que as tornaram possíveis em tempo recorde, incluindo o do processo burocrático. Se partíssemos do ponto de partida de uma dificuldade, ou até impossibilidade de domínio sobre a sua evolução, o foco nos idosos e outros grupos de risco e na capacidade de resposta dos sistemas de saúde seria outro. Assim como o da saúde pessoal, o último reduto, que parece estar sempre ausente de qualquer comunicação.

No mesmo texto, Acton acrescenta: “A liberdade permite-nos cumprir o nosso dever sem ser impedidos pelo Estado, pela sociedade, pela ignorância e pelo erro.”

O problema de decisões centralizadas e uniformes sobre largos grupos demográficos e territoriais é estarem sujeitas ao erro, resultando em falhas sistémicas mais gravosas do que o acumular de decisões dispersas, mais certas ou menos certas, mas autónomas quer por Estados, comunidades locais, empresas e, finalmente, indivíduos. Por exemplo, qualquer proprietário, seja no comércio de rua ou em empresas, tem – ou devem ter – a capacidade de tomar precauções com condições de acesso, como exigir o uso de máscaras de uma dada qualidade (subsiste a dúvida se um ponto de comércio de rua poderia ter imposto como condição de acesso o seu uso em fevereiro de 2020) ou a medição da temperatura. É também graças a essa dispersão de abordagens que podemos observar resultados diversos, na verdade similares, entre diferentes graus de decisões de restricionismo e confinamento e a sua quase ausência.

É certo que precisamos agora de um plano: cuidarmos prioritariamente do isolamento temporário e vacinação dos idosos, verificar os processos de aumento de capacidade de resposta e abrir já e agora. Sentirmo-nos parte da coação da liberdade dos outros não é vida para ninguém, mesmo que a alguns pareça coisa pouca a participação nesta espécie de estado de fascismo (sempre uma parceria corporativista entre o público e o privado) do medo.