Vindo de Miami, Florida, para aterrar em Lisboa por estes dias, em pleno refogado de notícias marxizantes e bolivarianas a ferver na cozinha de S. Bento, deixa alguma perplexidade a um portuguesinho de gema, burguês e patriota, com vida feita um pouco por todo esse mundo de Deus.
Por cá, e depois de uma euforia experimentada a 6.700 quilómetros de distância, mergulhado num clima de abundância e progresso, um olhar pelos títulos dos jornais portugueses deixa um peso na alma.
Por fortuna e casualidade, encontrei respostas a todo esse cinzentismo no último livro de Marcello Duarte Mathias “O Português visto por (alguns) Portugueses – Autores dos séculos XX e XXI”. Li-o em 8 horas e meia no avião de regresso.
Nesta obra deparamo-nos com retratos hiper-realistas e alta-definição do nosso país e de nós portugueses, em linhas brilhantes assinadas pelo autor e pela nata da intelectualidade portuguesa dos séculos XX e XXI que, em textos curtos e impactantes, nos deixam perceber a razão profunda de muita coisa do que se passa.
E com essa leitura incontornável descobre-se com nitidez o nosso Portugal e descobrimo-nos a nós portugueses.
Sim, porque neste livro encontra-se um molho de chaves que decifram o essencial milenário da nossa maneira de ser, tal como traduzem a base em que assenta o enlouquecido baile de máscaras do poder português actualmente em funções.
Quem acaba de regressar de um convite generoso para, 19 anos depois, revisitar Miami e, entre outras coisas, assistir a um surreal concerto de Rod Stewart, sente-se ter chegado de um outro planeta a este estranho local ocupado no espaço por um País de seu nome Portugal.
Mas vamos à história de Miami.
O concerto teve lugar no auditório do Seminole Hard Rock Hotel & Casino, edifício em forma de guitarra, que alberga um auditório para 7.000 pessoas (esgotado até à bandeira), que com o dito casino, tem discotecas, dezenas de restaurantes, um vasto shopping, e um imenso número de quartos e suites.
Tudo leva a crer que o principal filão daquele monstro é o Casino, por isso Rod Stewart acaba por ser, tal como em Las Vegas (onde estará este espectáculo em Maio, no Caesars Palace), uma espécie de subproduto (!) para atrair ainda mais jogadores enraivecidos…
A palavra “Seminole” que antecede a designação do Hard Rock Hotel, deve-se ao curioso facto de os 40 hectares de implantação deste complexo se situarem em território da tribo índia Seminole, o que confere ao negócio significativas vantagens fiscais, que acrescem à generosidade tributária do Estado da Florida.
Durante duas horas, num modelo de espectáculo que foi objecto de excelentes críticas (do The Guardian, por exemplo), Rod Stewart fez enlouquecer e enrouquecer um público histérico que pagara entre US$150 e US$1.800 por entrada. Cantou Da Ya Think I’m Sexy (imagine-se, aos 78 anos!!!!) passando por Sailing, pelo comovente Maggie May, e Hot Legs (ele acha que a idade o devia ter obrigado a deixar esta para trás), num mixto de sex pop, rock a todo o gás, baladas de tons escoceses (é adepto ferrenho do Celtic Football Club, de Glasgow, de tal forma que numa das canções apresenta o emblema do clube em fundo), um pouco de tudo. Muito comercial, muita cor, um conjunto de instrumentistas de alto gabarito elas no coro, e também bailarinas e instrumentistas de topo. Tudo profissional até à medula, com a luminotecnia e os efeitos especiais a ajudarem à festa.
Mas o mais importante é que Miami foi o pano de fundo desta história, cidade considerada há pouco tempo pelo Financial Times a mais importante dos EUA, um paraíso de liberdade que atrai gente de todos os credos, fortunas e desfortunas. Interessante que o CV19, ao contrário do resto do mundo, tenha trazido um novo impulso à Florida e à sua capital, onde o confinamento praticamente não existiu. Muitos estabelecem agora parecenças com o que era o início do boom de Silicon Valley em 1999.
Desde Janeiro de 2020 cerca de um quarto de milhão de americanos mudaram-se de outros Estados para a Florida. A fiscalidade muito baixa ajudou àqueles que, devido ao CV19, se sentiram desligados das suas comunidades familiares, amizades, colegas de trabalho e desporto, e também aos que queriam fugir às desorientaões ocorridas com a pandemia em Nova York e na California, para construir algo de novo.
É agora totalmente descabida a imagem da Florida que, muito por causa do seu clima, se transformara num colossal lar de terceira idade oriunda de toda a América. Isso, com excepção de Palm Beach e uma ou outra zona do Estado, está totalmente diluído.
Em geral, tropeça-se nos espaços públicos com uma população de idade média relativamente baixa, multicultural, bilingue, profissional, bem vestida, bem automobilizada, magros (os obesos, tal como os idosos, sumiram…), com semblante feliz e realizado. A densidade de universidades, e estabelecimentos de ensino técnico traz cá para fora sucessivas ondas de novos americanos, atrevidos, desafiantes, fontes de esperança permanentemente renovada.
O entorno urbano, com abundante água de mar, rios e canais, é muito atraente. Não se encontram áreas de Miami, que não estejam ajardinadas com primor, sinalizadas com critério, quilómetros e quilómetros de ruas transversais ladeadas ad infinitum por casas sem quase sinais de muros de cimento para a rua ou entre elas, envoltas em vegetação luxuriante, que induz numa leitura de cidade segura e confiante.
Os preços das casas (US$300.000/500.000) na maior parte das áreas são acessíveis para a classe média e baixa, já que os salários são elevados. O mercado imobiliário tem grande liquidez, com um movimento imparável de oferta e procura. E depois há áreas mais afluentes, como Fisher Island, ali a 5 minutos do centro da cidade (com rendimento médio de US$2,2 milhões anuais, a área mais rica dos EUA), onde o mercado de casas, aí bem mais caras, também é líquido, oferta e procura em movimento constante, com compradores que na California vêem no FaceTime uma residência que lhes agrada, e pagam US$ 25 milhões sem a visitarem fisicamente… Daqui resulta um preço médio por casa de US$470.000 no final de 2022, após o mercado ter registado uma subida de 21%.
E, claro, não há crise de habitação, pois o Estado assistencialista é expressão desconhecida, e o subsídio é palavra hieroglífica e rebaixante.
No hub financeiro de Miami existem agora 611 bancos, e o hub tecnológico da Florida alberga cerca de 33.000 companhias IT, o novo Silicon Valley dos EUA. Tudo se situa num crescimento imparável. Nessas e noutras áreas da economia, o atractivo dos investidores, e do empreendedorismo hiper-activo resulta de um modelo fiscal de eficácia assombrosa, aliado naturalmente a outros factores.
Tudo se torna mais atraente se o visitante tem a possibilidade de entrar dentro da intimidade do reality show das famílias de Miami, assistindo, por exemplo, ao Super Bowl em casa de um amigo (foi no passado dia 13). Como o jogo (pouco familiar para nós, que lhe chamamos “futebol americano”, sem nenhuma relação com o nosso) tem incontáveis interrupções (são quatro partes de 15 minutos cada) acaba por demorar três horas. Assim, a publicidade acaba por ser um entretenimento adicional, com spots produzidos e realizados exclusivamente para aquela noite, interpretados por actores de cinema mais em voga. 30 segundos de publicidade custam entre US$6 e US$10 milhões, para um o número médio de telespectadores de 113 milhões nesses 270 minutos. O espectáculo do intervalo de meia hora – este ano foi Rihanna – é sempre aguardado com grande expectativa. Os EUA nessa noite param, e a berraria e excitação espalham-se até à estratosfera vindas das casas de cada um, com tudo a comer, a beber, a ter ataques cardíacos devido às emoções.
Tal como é bem mais interessante poder ter contacto com Artistas, e visitar pela mão deles o Wynwood District, até há pouco uma zona infrequentável da cidade (droga, assassinatos diários a tiro, prostituição, etc), agora “limpa” e séde da mais cativante Street Art, onde o nosso Vhills brilha a grande altura.
É a era do post-grafiti. Os grafitis eram uma forma de protesto vandálico, o post-grafiti é a pintura com arte de parede pública, muita dela de grande qualidade. No último fim de semana houve uma Wynwood Art Fair em simultâneo com o Boat Show (que integrava barcos de luxo pornográfico, com muitos compradores interessados), atraindo uma mescla de gente que colapsou o trânsito da área.
Wynwood apresenta um modelo cultural alternativo interessantíssimo. É uma aurícula do coração do que é “novo”, do exercício da liberdade em pleno, da inovação, da rebeldia abundante e no meio de abundância. E não cabe dúvida que daqui a poucos anos aquilo verá grande parte das edificações térreas destinatárias do exercício da Street Art transformadas em inúmeros arranha céus… A energia produto deste movimento do Street Art já é ali visível em restaurantes de todo o tipo (incluindo alguns Vegan, claro), discotecas ao ar livre, bares, comércio dos mais variados produtos. Este vai desde roupa barata, a artigos de design, a galerias de arte, a serviços (uma “psíquica/vidente”, por exemplo, tinha fila à sua porta, que estando aberta para a rua permitia ver o cliente). E até um estabelecimento denominado “Cars & Guitars”, em que dentro estão estacionados automóveis de colecção a preços que variam entre US$30.000 e US$1.000.000, e nas paredes dezenas ou centenas de guitarras eléctricas entre US$700 e US$190.000, e sem ser, entre US$300 e US$50.000. “Como vai o negócio?”, pergunta-se. “Could not be better”, é a resposta. Vale a pena ver o site https://waltgracevintage.com
Num registo bem mais burguês, o Design District de Miami é outro destino cultural de peso, que apesar de estar perto, é radicalmente diferente de Wynwood. Em edifícios que não excedem os três pisos, ruas leafy, arborizadas confortavelmente, concentram-se 130 galerias de arte, empresas de arquitectura, antiquários, salas de exposições, ao lado dos Diors, Pradas e Hermeses deste mundo, de diners acessíveis e restaurantes com estrelas Michelin. Nas galerias encontram-se à venda obras de arte de excepção como Picassos, Chagalls, Mirós, etc, ao lado de obras contemporâneas com apurado sentido selectivo na procura da excelência.
Este projecto foi iniciado nos anos 2000 num extenso bairro pouco ou nada residencial, onde os empreendedores imobiliários conseguiram os objectivos de estabelecer o tipo de comércio a que vinham: afluência e cultura. Ali se respira uma América diferente, bem mais conservadora na sua elegância e gosto, em jeito da intimidade de um bairro “rico”. Respira-se tranquilidade, elegância, os carros de topo de gama obrigados a circular até 15km por hora para se exibirem ao gosto da vaidade dos que os conduzem, as e os transeuntes vestidos em concordância com as marcas de topo que ali os levam. A qualidade arquictetónica tem a discrição de um projecto urbano bem sucedido: fazer aquele “povo” parecer feliz.
O Little Havana é, entre outras, uma das vastas áreas da cidade que alberga ao lado de cubanos, muitos outros cidadãos originários de países latino-americanos. Os cubanos predominam, claro, assumidos como tal, empreendedores, trabalhadores incansáveis, anti-comunistas até à medula para, com o trabalho, provarem a sua razão.
Inesperado é não se verem bandeiras dos países de origem dessa população latina, apenas bandeiras americanas, um pouco por todo o lado. Ou seja, uma integração cultural surpreendente, apesar de muitos deles não falarem uma palavra de inglês. Incluindo os motoristas UBER, um deles queixando-se que, sendo Engenheiro Civil (colombiano), e por mal falar o idioma após dois anos de ter lá chegado, não ter conseguido ainda aproveitar as suas qualificações. Mas já tinha uma linguagem castelhana e corporal “à americana” … E visitar um amigo latino de velha data para beber uns mojitos, jantar “fabada” na excelente Casa Juancho, regado a bom e barato Rioja, ir dançar salsa no “Ball & Chain”, tudo isso são complementos de inclusão indispensáveis para um forasteiro, nesta aguarela tão latina, tão gritante e tão americanamente próspera.
E retomo a reflexão quanto ao choque de alta voltagem recebido no regresso a Portugal desta incursão americana, certamente menos bem esboçada, pois não tenho queda para temas políticos e, salvo bastantes excepções, apenas mantenho uma curiosidade interesseira pelos títulos dos jornais com o objectivo de me manter razoavelmente informado.
Saído de Miami numa nuvem etérea, ao longo de quase nove horas de voo para Lisboa, na leitura ávida de todas as páginas do livro de Marcello Mathias, reconheci o triste Português de gema que sou.
Mas mais triste foi enfrentar as notícias frescas de um número indeterminado e muito variável de ministérios e ministros (parece haver um primeiro, mas não, no absurdo bolivariano em curso, aparentam estar todos ex-aequo, em último), com pendor para um Portugal suicidário.
Ao contrário da criação de riqueza exponencial com que me deparei na Florida, vim reencontrar os portugueses abraçados uns aos outros num conformismo quase universal face ao vórtice imparável de criação de pobreza por um Estado cada vez mais colectivista, modelo com efeitos letais que os venezuelanos de Miami conhecem bem.
No regresso à terra cujo ADN levo no sangue e amo, absorver tudo o que se passa com Portugal e com o português suave do tempo que corre, vejo no país e no povo adorado pelos estrangeiros que nos visitam, algo que estes não enxergam: um ambiente espesso de pré-terramoto, uma nuvem negra, com malabaristas em exercícios de propaganda carente de sentido, um brain-washing de dez milhões de almas que a liberdade de imprensa (graças a Deus, ainda resiste!) não consegue conter eficazmente.
E insisto: algumas das chaves do segredo que são as razões deste labirinto português que nos atormenta encontram-se no livro de Marcello Duarte Mathias, “O Português visto por (alguns) Portugueses – Autores dos séculos XX e XXI”.
23 de Fevereiro, 2023