Logo a 6 de Junho, o Nouvel Observateur exibia em capa, sobre um mapa da Europa sombrio com fronteiras rubras, uma hidra de cinco cabeças (Geert Wilders, Viktor Orbán, Marine Le Pen, Giorgia Meloni, Alice Weide), todas elas munidas de olhos maléficos e bocas sinistras; bocas essas de onde talvez só não escorresse um fio de sangue para que os leitores (e os eleitores) não tomassem imediatamente por vampiresca ficção a peça jornalística anunciada: “Extême Droite en Europe: La Menace Intérieure”.

No dia 8 de Junho, as primeiras páginas dos jornais continuavam a fazer soar o alarme por toda a Europa perante uma possível e terrível alteração climática eleitoral. O risco era extremo ou mesmo transcendental. Previam-se temperaturas à boca das urnas nunca antes registadas.

O El Pais trazia um extenso título: “Europa ante unas elecciones transcendentales” (e em baixo) “Von der Leyen enfria ahora su acercamiento a la ultraderecha”. O Le Monde, outro farol de isenção jornalística, titulava: “L’Europe sous la pression de l’extrême droite”; e o conceituado Libération : “Européenes – L’Extrême Risque”.

Em Itália, “as gordas” do La Reppublica (“Sovranisti all’assalto della UE”) também bradavam o seu Hannibal ad portas!, a fim de preparar os europeus para a invasão dos bárbaros soberanistas. Mas a 9 de Junho, dia de quase todas as votações, o mesmo La Reppublica sossegava os leitores: “Sovranisti divisi al voto”… Não sem que o director do jornal, Maurizio Molinari, lançasse em editorial um “Às urnas, cidadãos!”, não fosse o diabo tecê-las: “Alle urne contro il retorno dei nazionalismi!”

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A 13 Junho, perante os resultados, o Nouvel Observateur passaria então a concentrar-se na Frente Popular que se organizava para livrar do mal a França (e a Europa), exibindo em capa uma pluralidade de seres pensantes de rosto humano sob um fundo cor-de-rosa: “Face au RN: La Gauche au Défi du ‘Front Populaire.’” Se dúvidas restassem quanto a certo jornalismo de excelência, isenção e referência, bastava confrontar as capas do Nouvel Observateur de 6 e 13 de Junho.

O inimigo nacionalista

O nacionalismo, eis o inimigo: é a peça retórica dos federalistas e esquerdistas europeus; os que, do centro-direita à extrema-esquerda, continuam a sustentar as utopias kantianas ou pseudo-kantianas da paz perpétua num planeta onde os Estados seriam abolidos e os homens, ou melhor, os seres humanos ou até os seres vivos em geral, seriam iguais, dóceis, desvinculados e prontos a consumir.

No mundo real, lembramos que na descrição dos construtores da União Europeia o objectivo proclamado era “interligar as economias dos Estados Nacionais europeus e submetê-las a regras e controlos comuns, de tal forma que nenhum membro pudesse prosseguir interesses próprios contra outros, sem graves consequências.” Daqui se esperaria uma comunidade de nações de onde, ultrapassadas as rivalidades nacionais e os instintos de dominação, os países pequenos saíssem com mais poder do que teriam por si próprios.

A história da União Europeia tem vindo a mostrar o que havia de utópico nesse almejado apagamento dos interesses nacionais. Na verdade, o que se foi vendo durante muitos anos foram os constantes duelos e confrontações entre os grandes poderes pela hegemonia entre os Estados membros, com o Reino Unido, até ao Brexit, a procurar limitar a influência dos Estados centrais continentais, espicaçando o duelo – e depois o jogo – franco-alemão.

Entretanto, o que emergiu do fracasso desta utopia igualitária integrada foi uma classe dirigente bem instalada no topo e na estrutura média-alta da Comissão que, com a burocracia de Bruxelas, foi discretamente procurando criar um suprapoder sobre os governos eleitos dos Estados-membros. Esta nova estratégia acentuou-se quando os referendos francês e holandês recusaram a famosa Constituição Europeia. Ao mesmo tempo, através dos seus influencers mediáticos, foi querendo convencer-nos de que deveríamos subalternizar as nações e as fronteiras em nome da paz, da democracia e da igualdade entre os Estados.

O estado da “ARTE”

A emissão da cadeia franco-alemã de televisão ARTE na noite das eleições europeias foi elucidativa: o semblante quase fúnebre dos comentadores ao ouvir as notícias dos correspondentes em França e na Alemanha – a vitória do Rassemblement National e a baixa votação da coligação alemã no poder (sociais-democratas + verdes + liberais) –, só se transfigurou quando passaram à análise dos resultados na Polónia. Ali, porque a coligação de centro-esquerda chefiada por Donald Tusk, agora herói democrático, tinha marcado pontos e vencido, pivots e comentadores passaram a irradiar felicidade. E com a felicidade veio também a flexibilidade quanto à verdade: não seria o facto de os abusos de poder de que Tusk acusava o Lei e Justiça se terem repetido e agravado com o seu governo que iria ensombrar aquele feliz nicho em noite eleitoral; e porque não atribuir ao actual governo progressista uma renovação das Forças Armadas Polacas feita ao longo dos anos pelos “iliberais” governos anteriores?

Feliz ou infelizmente, nada disto resiste à dura realidade. O evidente estrebuchar perante a vitória da direita nacionalista e popular e a perspectiva de perda de influência de alguns poderes instalados não precisa de fact check – os factos estão aí e são eloquentes:

Nos grandes países – Alemanha, França e Itália – a direita e as direitas nacionalistas e nacionais-conservadoras, separadas, independentes ou coligadas, venceram e ficaram em maioria. Na Alemanha, o primeiro partido foi a aliança da União Democrata Cristã e da União Social Cristã (CDU/CSU), e o segundo, o partido “populista de extrema-direita” Alternativa Para a Alemanha (AFD); em França, o Rassemblement National foi de longe o primeiro partido, com mais do dobro dos liberais de Macron, obrigando o Presidente a convocar eleições antecipadas. E, em Itália, Giorgia Meloni saiu em triunfo com os seus Fratelli d’Italia.

Assim, no Parlamento Europeu, as famílias dos partidos da direita nacional e popular – Conservadores e Reformistas Europeus, com 73 deputados, e Identidade e Democracia, com 58 – cresceram significativamente. Apesar de todos estes partidos e de estes dois grupos terem as suas diferenças, é possível que possam aproximar-se de modo a constituir uma aliança. E além destes, estão ainda os não-inscritos, entre os quais os 17 deputados da AFD e os 11 do Fidesz húngaro.

Todos estes partidos, ditos de “ultra-direita” ou de “extrema-direita”, são nacionalistas e soberanistas; são, por isso, críticos do federalismo e do alargamento de poderes dos órgãos não-eleitos democraticamente da Comissão. No resto divergem, ou seja, uns são mais religiosos e conservadores em costumes, outros mais liberais. E o mesmo quanto à economia.

E há causas, outrora na crista da onda, como a Agenda Verde, que saíram bastante mal destas eleições, com os Verdes a perderem 19 lugares no Parlamento (passando de 71 passa para 52). Os graves prejuízos infligidos aos agricultores europeus, a opacidade de algumas políticas e negócios de sustentabilidade e energias renováveis e os custos da desindustrialização levaram a esta baixa.

Com os comunistas e a extrema-esquerda em vias de desaparecimento, com a crescente consciencialização da influência nas estruturas não eleitas da União de alienadas “vanguardas esclarecidas” e a gradual constatação dos graves danos causados pela investida woke, com o crescimento das direitas nacionalistas e conservadoras nos grandes países europeus e a progressiva transferência de “voto católico” para estas direitas, talvez possamos esperar uma reversão do ciclo pró-globalista e mundialista que resultou do fim da Guerra Fria.

Mas por enquanto, no proselitismo cultural e moral que vai sustentando o resto, ainda não há nada que chegue ao verdadeiro populismo (o propagado a partir dos costumeiros “lugares de virtude”, institucionais ou comunicacionais) nem à verdadeira desinformação (a devidamente referenciada como informação e dispensada de polígrafo).