Talvez possa parecer estranho para muitos dos leitores, mas, ainda muito antes de 2020, em 2016, mais concretamente em Fevereiro, adoeci de forma violenta, vendo-me abrupta e inesperadamente atirado para um limbo de agonia febril destilada, à vez, e a custo, entre o sofá da sala, em frente ao televisor que passava clássicos de TV na Netflix, e a cama, dormitando com um olho aberto e outro fechado, sempre na ânsia de que o acordar fosse melhor que o adormecer.
O ataque do malfadado vírus à minha pessoa foi total, quebrando-me o apetite, as forças e a vontade. A pão e água, incapaz de ler ou escrever, longe dos filhos por profilático isolamento sem necessidade de carimbo estatal, gemi, resfoleguei e lamentei-me durante cerca de uma semana. Impossibilitado de viajar, foram dias de lenta e dolorosa recuperação, com mazelas que ficaram, numa experiência que nem o Covid anos mais tarde foi capaz de repetir.
No entanto, nem tudo foi mau. Isto porque se não fosse essa “gripe”, no dia 24 de Janeiro de 2016, com toda a naturalidade, teria caminhado até à minha secção de voto e, muito provavelmente, votado em Marcelo Rebelo de Sousa para Presidente da República Portuguesa. Graças a Deus, bem como à abençoada gripe, isso nunca aconteceu — e a minha consciência permanece assim, ao contrário da de muitos, livre de remorso, culpa e angustiada vergonha.
Verdade seja dita, logo após os primeiros dias de campanha eleitoral para essas fatídicas eleições presidenciais, decidi não votar Marcelo Rebelo de Sousa. A razão era simples: o homem não dizia nada, afirmava ainda menos, deixando de fora qualquer coisa que se assemelhasse a uma ideia para o país. Volta não volta, largava alguma inanidade, normalmente para atrair eleitorado de esquerda, aquele que verdadeiramente desejava pois que o de direita, como eu, já dava por adquirido. Em suma, um cata-vento político, tal como Passos Coelho bem havia, entre meias palavras, explicado com o fino acerto que é seu apanágio.
Na ânsia de agradar a todos, Marcelo optava pela estratégia estilo-Rainha-de-Inglaterra, imaginando que seria da ausência de posição política que, pairando acima de tudo e todos, viria o seu poder majestático, neutral, logo de união nacional e não partidário, sectário, divisivo. Assim também os meus amigos e companheiros do PSD, naturais apoiantes da candidatura, o queriam acreditar. E talvez assim pudesse ter sido, mas a verdade é que a Rainha de Inglaterra não andava por aí e acolá, sempre aos pulos e aos gritinhos, a babar-se para uns e aos beijos aos outros, gastando as horas laborais em selfies e em mudanças de cuecas e calções de banho — quando não sacudindo e escovando a areia das partes pudicas com uma toalha — tudo sempre em público, à vista de todos, como convém.
Vai daí, à estratégia monárquica de Marcelo, sem pose, postura ou coluna vertebral, sobrou apenas o vazio de ideias, princípios e visão. Nunca pairou acima de nada, salvo como um canário multicolor, estridente, incontinente, por todo o lado soltando verborreia, num baboso e deplorável exercício de eloquência vazia, tão abundante e excessivo quanto estéril e maníaco. E assim foi piorando, coisa que se adivinhava, daí que o voto no Prof. Marcelo, já em 2016, se anunciasse como uma escolha, senão politicamente suicida, pelo menos arriscada.
Infelizmente, do outro lado do espectro político, o PS lançava Sampaio da Nóvoa, ou névoa, para alguns, uma nódoa, no entanto, indivíduo desnorteado que, face ao perigo de passar a uma segunda volta num país majoritário à esquerda, assustava qualquer um que colocasse sequer a possibilidade de votar em Henrique Neto, um socialista honesto, ou mesmo em branco ou nulo, duas outras opções igualmente legítimas.
Ora eu, que não sou um radical, tendo para a responsabilidade e o compromisso político. Assim, em nome da tragédia menor, aceitava-se, à época, que, de olhos tapados, suspirando, à rasca, se votasse Marcelo — apesar de Marcelo. Naturalmente, hoje em dia, depois de tudo, já se percebe que tal opção se tratava de um erro gravíssimo, derivando daqui a completa legitimidade para o remorso e para a culpa daqueles que, ao contrário de mim, não se viram na felicíssima circunstância de adoecer violentamente e verem-se forçados à abstenção.
Abençoada gripe, repito, feliz pelo alívio individual. Mas a gripe salvou-me apenas do remorso pessoal, não da tragédia colectiva que esse 24 de Janeiro de 2016 viria a significar para o país e para muitos portugueses — infelizmente, nada será como dantes depois do cataclismo político que é Marcelo Rebelo de Sousa.
Na sua ânsia extravagante, obsessiva, compulsiva, profundamente narcísica, pela popularidade imediata, pelo clamor do povo em hosanas e aleluias, o Prof. Marcelo rapidamente imaginou que, se queria ser reeleito, primeiro, a sua presidência não poderia ser outra coisa além de uma espécie de prolongamento do campo de futebol e, depois, em segundo lugar, que enquanto o governo do Dr. Costa fosse popular não haveria de ser à conta dele que haveria qualquer espécie de problema “institucional”.
E assim foi. Vieram os incêndios que mataram centenas de portugueses e o Prof. Marcelo, hiperactivo, chorou muito com os sobreviventes, beijou muito, tirou muita fotografia, exigiu muita coisa a discursar enquanto as brasas ainda ferviam na terra queimada, mas, depois, quando o fumo se desvaneceu por completo no ar junto com as câmaras de TV, foi como se não fosse nada. Mais tarde, aqueles com quem fotografou e a quem prometeu a sempre popular “justiça”, alguns já mortos, os outros esquecidos, lêem pelo jornal ou vêem pela TV que até os subsídios e donativos para a reconstrução, em parte, lhes foram sacados por autarcas e políticos. Nada, no entanto, que viesse a forçar o Prof. Marcelo a fazer o quer que seja, tirando o seu tradicional slogan, tão inconsequente quanto não sentido: “é preciso apurar tudo o que houver para apurar” — ou seja, no final, como sempre, nadinha de nada.
O mesmo se passou com Tancos, com o assassinado do SEF, com as tropelias do ministro Cabrita, o registo foi sempre igual: um escândalo de incompetência ou corrupção, o Dr. Costa lança para cima do fogo mediático um desgraçado de um ministro qualquer, este arde ali em lume brando até que já não sobre pinga de gordura ou nervo que alimente o fogo e, carbonizado, desfeito aquele em pó negro e carvão, o Dr. Costa finalmente despede o ministro — e o Prof. Marcelo agradece os serviços e toma nota para a condecoração do ano que vem. E foi deste modo — interesseiro, vil, torpe — que se chegou à maior maioria política de sempre: da extrema-esquerda parlamentar e do PS, no Governo, até Marcelo, na Presidência da República, não esquecendo o sempre prestável Dr. Rio que andava, lá por baixo, à cata dos restos.
E eis que veio a pandemia Covid-19. Ao início, o governo dizia que não era nada com ele, nem de grave. A ministra da agricultura até agradecia o vírus que, de acordo com a sua brilhante ideia, “iria melhorar as exportações para a China”. Já Marcelo, previdente, foi a correr fechar-se na sua residência pessoal a passar a ferro — não sem que antes chamasse as TV para a porta de casa. Cobarde como o medricas que é, incapaz de pensar para fora de si mesmo como o ego-maníaco que também é, o Prof. Marcelo exportou para o país os seus medos e terrores, imaginando como as criancinhas que o papão desapareceria se nos escondêssemos todos debaixo dos lençóis.
Naturalmente, não desapareceu. Aliás, foi ele, Marcelo, junto com o oportunista Dr. Costa, que transformaram o Estado no monstro papão que veio destruir a economia e a sociedade portuguesas, tudo engolindo, tudo espezinhando. À revelia da Constituição, a reboque da histeria mediática, sem ligar às vozes mais experientes e autorizadas — como o Dr. Jorge Torgal, por exemplo —, os dois políticos mais populistas da democracia portuguesa trataram de mandatar uma ministra incompetente e uma burocrata anacrónica, a Dra. Freitas — uma destrambelhada tão atrasada face ao conhecimento científico do dia que nem email ou computador utiliza — para imporem ao país as mais esdrúxulas medidas fascisto-sanitárias que, servindo de nada para “conter a pandemia”, nem sequer nos lares onde uma grande parte das mortes Covid ocorreu, serviram de muito para arruinar o país.
Pior. Foi uma triste ilusão de segurança que se paga agora com sangue. Em Portugal, a mortalidade por todas as causas, excepto Covid, subiu em 22 quase para os 30% acima da média dos cinco anos anteriores a 2020. Milhares de portugueses que viram as suas consultas adiadas e os seus tratamentos atrasados morrem agora em números muito superiores àqueles que morreram durante a pandemia. Mortos aparentemente de segunda categoria, pois que estes não merecem sequer notas de rodapé na mesma comunicação social que se excitava em frémitos histéricos a cada novo caso de Covid em Outubro de 21.
A debacle que foi a gestão da Covid-19 em Portugal, mais cedo ou mais tarde terá que ser analisada: há lições para aprender, responsabilidades para apurar. Nos últimos meses, o Tribunal Constitucional produziu 23 acórdãos onde declarou que as medidas de confinamento tomadas pelo Dr. Costa e pelo Prof. Marcelo, e na altura sob o aplauso entusiasta do Dr. Rio, foram inconstitucionais. Ou seja, não apenas destruíram o país economicamente e causaram directa e indirectamente milhares mortos, como infringiram de forma inequívoca os direitos, as liberdades e as garantias constitucionais dos portugueses. Não é coisa pouca, convenhamos: numa democracia decente, coisa que nem no Ocidente hoje em dia abunda, exigir-se-iam responsabilidades, inquéritos, demissões.
No entanto, agora, ao invés de analisarem o passado e aprenderem com os erros, em vez de assumirem as necessárias responsabilidades, vêm os mesmíssimos perpetradores das inconstitucionalidades promover uma alteração da Constituição que visa tornar constitucional aquilo que o não era — ou seja, em casa roubada, contratam-se os assaltantes para arrancarem as portas e fugirem com elas. Acresce ainda que, mais uma vez, nada se apurará relativamente às responsabilidades na gestão danosa da Covid-19, muito pelo contrário, bem ao estilo do Prof. Marcelo e do Dr. Costa.
Já a nós cabe-nos aplaudir o desplante: alterando a Constituição para lá enfiar os abusos constitucionais que se cometeram em 20 e 21, Costa e Marcelo tratam de limpar as mãos — sujas, bem sujas — esfregando-as, sem pejo, pelos sofás e paredes das nossas casas, bem à vista de todos, perante a indiferença generalizada do povoléu jornaleiro e político. É obra.
E diante desta pouca-vergonha digna de um país de terceiro mundo, face ao evidente atentado contra a liberdade e a democracia liberal perpetrado por uma clique política incompetente, inimputável, sem vergonha ou pruridos, a reboque do Dr. Costa e sob a batuta irresponsável de Marcelo, o novo PSD de Luís Montenegro parece anuir e, ao invés de defender os nossos direitos e liberdades, resolveu compactuar com o maior atentado político contra a democracia portuguesa.
Depois do desastre que foi a presidência de Rui Rio, o PSD tinha aqui a oportunidade de redimir-se perante os portugueses, ajudando a restaurar a normalidade democrática, a defender os direitos fundamentais, reassumindo o seu papel como o principal partido em Portugal na defesa das liberdades e direitos das pessoas face ao Estado, bem como rompendo com o unanimismo pastoso que tomou conta do país. Mas que nada, fez o exacto oposto: onde Costa e Marcelo ensejam despudoradamente lavar as mãos, o PSD optou por emporcalhá-las, mais uma vez deixando a direita órfã de uma voz activa na oposição à tomada do poder absoluto socialista, bem como de uma defesa dos direitos e liberdades que, sendo fundamentais a uma democracia liberal, são tão caros à direita democrática. Outros aproveitarão, naturalmente.
No final, nada de novo, continua tudo no pântano dos últimos 7 anos, apenas que agora, misturados com a água porca que lava as mãos iníquas de quem manda, são já os nossos direitos e liberdades constitucionais que são deitados fora de acordo com as conveniências políticas do momento.
Que Marcelo, um farsante maníaco, para safar a reputação, cuspa nos direitos fundamentais presentes na Constituição que jurou defender, isso, sinceramente, não pode admirar ninguém; agora, que o PSD de Montenegro embarque nesta louca irresponsabilidade e se resigne, mais uma vez, a ser a muleta da tenebrosa aliança Costa-Marcelo, isso já não pode deixar de ser uma triste e amarga notícia.
Os portugueses estão cada vez mais sós e fracos diante um Estado cada vez maior, mais poderoso, ao qual, em querendo, agora já lhe basta acenar com o papão da peçonha para enfiar tudo e todos em casa ou, no caso dos mais recalcitrantes, na profilática cadeia. Mas não nos preocupemos, afinal garantiram-nos que vai ficar tudo bem — só que não. Aliás, quando muito, isto apenas vai de mal a pior.
Nota editorial: Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.