Em termos espirituais, as pessoas são ouvidos andantes. Mais do que serem olhos, mais do que serem narizes, mais do que serem mãos, mais do que serem bocas, as pessoas são ouvidos. Ouvir é o sentido mais importante de todos. Podemos ver mal ou cheirar mal ou tocar mal ou comer mal e, ainda assim, nos safarmos pela vida fora. Mas se ouvirmos mal estamos condenados. Vida pede ouvido.
Quando pensamos no que fazemos, podemos pensar na nossa vocação. Ainda hoje usamos a palavra vocação para falar acerca das coisas mais essenciais que fazemos. É curioso porque a base da ideia de vocação vem de ouvir uma voz. No latim, é a vox que nos dá a vocatio. Para quem aceita a história do livro de Génesis, aceita também que uma voz foi o início de tudo o que existe. Tudo o que existe e nos enche os sentidos de ver, cheirar, apalpar e saborear só existe por causa desta voz primordial que, ao fazer-se ouvir, deu origem ao Universo. Existimos porque algo se deu a ser ouvido.
A voz criadora falou e assim tudo se fez. Deus fala e tudo se faz. Já pensaram na força deste conceito fundador? Podes até não acreditar nele mas que é forte, é. Para quem tem fé nesta história fundadora, seja judeu, cristão ou muçulmano, a verdadeira existência só se dá quando damos ouvidos à voz fundadora, que é a de Deus. Isto tem as implicações mais práticas: até se ouvir não se é. Se o assunto for a nossa vocação, por exemplo, sabe-se o que fazer a partir de se ser um ouvinte da voz. Não dá para separar ser de ouvir.
Acho que, se formos sinceros, estamos todos a ouvir demasiado pouco. E o facto de ouvirmos demasiado pouco não significa que vivemos no meio de poucas coisas para ouvir. É até o contrário. Vivemos num mundo hiper-amplificado, sobrecarregado de sons. Mas o facto de esse excesso sonoro existir não corresponde ao muito que ouvimos – dá-se até a triste proporcionalidade inversa de quanto mais soa à nossa volta, mais difícil é ouvir cá dentro. O segredo por trás do uso tão deficiente dos nossos ouvidos está em não lhes dar descanso.
Digo aos nossos filhos que é preciso aprender a tirar os auscultadores. Topem a ironia tão trágica: embarretamo-nos de fones para não termos de suportar as pessoas e as circunstâncias mais físicas e presentes à nossa volta. Quando foi a última vez que ouvimos uma rua, tentando distinguir a origem de cada rumor? Encafuamo-nos em música digital e em podcasts porque, como confessava o T. S. Eliot, não suportamos tanta realidade. Ao ganharmos o hábito de impor aos nossos ouvidos a nossa vontade, sobretudo através dos infinitos recursos digitais que mais nos agradam, perdemos a vontade de ouvir.
Logo, uma receita para não saber ouvir é ouvir demais. Outra receita para não saber ouvir é, como se está mesmo a ver, falar demais. Nestas duas receitas temos grande parte da dieta dos nossos dias. O excesso tecnológico à nossa volta potencia até à náusea ouvir demais e falar demais. Ouvir tudo o que se pode e falar tudo o que se pode corresponderá, cruelmente, a ter a pior relação possível com a palavra, o princípio da criação de todas as coisas. O antídoto para qualquer excesso é o descanso. O mesmo Deus que criou tudo com a sua voz original chegou, seis dias depois, à conclusão: descansar é preciso. Ouvintes andantes que somos, precisamos de dar descanso aos nossos ouvidos para, depois, eles voltarem a trabalhar como deve ser.