Por muito que se diga o contrário, ninguém acha genuinamente que está errado. Que sentido faz estar errado, sabê-lo e permanecer errado? Nenhum: e é por isso que não acontece, a não ser, imagino, em determinadas patologias excecionais.

Podemos reconhecer que estivemos errados no passado; somos capazes de apreciar honestamente a possibilidade presente de estarmos errados. Juramos até saber que estamos errados, mas persistir, ocultando a esperança de estarmos certos, que é aquela que nos move. Em cada momento, mesmo dizendo o contrário – quase como apólice de seguro, não vá dar-se esse caso – vivemos todos convencidos de que estamos corretos em relação a tudo sobre o qual nos sentimos suficientemente confiantes para formar uma impressão: quer seja a verdade de um facto, a validade das premissas de um argumento, ou a lógica e sensibilidade de uma opinião.

Este é, julgo eu, um ponto de partida importante para o tema que me interessa abordar, que é o da relação entre a empatia e a moderação, ou mais precisamente entre a falta de empatia e o extremismo. É um tema ingrato, como verão mais tarde aqui na caixa de comentários, pois as suas conclusões não agradam a quase ninguém, da direita à esquerda, julgo eu que por precipitação.

Já é um lugar comum falar na polarização da sociedade, como se fosse a raiz de todos os males. Não é: a polarização é uma consequência necessária do debate político vivo, que deve servir para estabelecer com clareza diferenças no plano das ideias e dos valores. Esse debate vivo é o instrumento fundamental da democracia, que nos permite encontrar referentes ideológicos e optar entre visões distintas do mundo. Sem polos ideológicos fortes, preferencialmente não binários, verdadeiramente atrativos e enérgicos, a participação política desvanece, as opções políticas tornam-se todas iguais e somos depois surpreendidos por saltimbancos antissistema cujo único traço distintivo é discordarem de tudo o que estava a ser dito e feito antes de eles chegarem. Não foi a polarização ideológica que os criou: foi a falta dela.

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O problema, dizia, não é a polarização: é a forma como começámos a lidar com quem não está completamente no nosso polo. Com quem não concorda connosco, o que é o mesmo que dizer: com quem achamos que está errado. Não me entendam mal: isto não é um daqueles textos a dizer que temos de ser amigos dos racistas, dos homofóbicos, dos machistas, como se fossemos um bando de anémonas disponíveis para abolir valores e princípios firmes em nome de uma cultura absolutista de tolerância. Deixem-me terminar.

O que eu quero dizer é que, nos temas que verdadeiramente interessam – e na maioria dos que não interessam – conseguimos perceber, um pouco por essas interações sociais que as redes tornam públicas, uma incapacidade e cansaços generalizados para discutir com pessoas que achamos que estão erradas. A não partilha de uma mundividência passou a ser um defeito de caráter imperdoável, pelo qual o transgressor deve pagar caro e de preferência de forma pública e retumbante.

Só que estarmos errados posiciona-nos apenas em contraponto com a verdade, não nos posiciona em contraponto com a virtude. Ninguém é pior pessoa por estar errado; e também importa sempre perceber porquê. Não sendo o mundo a branco e preto, também não se divide ao meio entre quem está certo e quem está errado, sobretudo em temas complexos, cujas nuances oferecem espaço a que múltiplas visões distintas coexistam sem que nenhuma seja necessariamente superior.

E isto é um problema, porque é muito mais fácil ver o mundo a preto e branco. A complexidade é uma coisa para a qual deixámos de ter tempo. Já nada é complicado, tudo tem uma resposta imediata, absoluta e simples, e como tal andamos cheios de certezas. Assim, adotamos a forma mais básica e animalesca de interagir com o outro que nos confronta nessas certezas: como se ele fosse uma ameaça. O confronto é a forma mais simples de resolução de conflitos, porque não carece de qualquer operação racional: é só avançar agressivamente.

Haverá razões para esta crispação, que se sente, se respira e se ouve, no discurso público, nos debates entre amigos, nas conversas com desconhecidos. Será o medo e a insegurança de um mundo em mudança acelerada? Será a culpa de instituições fragilizadas por histórias incessantes de corrupção? Será a incerteza de quem mal saiu de uma crise e se vê agora entalado noutra? Será a desconstrução acelerada de certas estruturas centenárias de poder, ou o facto de não se desconstruírem tão rápido quanto deviam? O desconforto que provocam questões de género, questões raciais, o conflito de valores fundamentais e conceções diferentes de liberdade e justiça? Será o sinal de novas gerações condenadas a viver pior que as anteriores? Não sei dizer, mas quem saberá com certeza?

Todos achamos que estamos certos. Isto, sei. Eu, tu, nós e os outros, cada um convencido da sua verdade, como é normal. Mas essa convicção, mesmo quando mal-amanhada, não pode ser inabalável nem inamovível – poucas coisas o são verdadeiramente, sobretudo quando mal sustentadas. Mas, se atacada à maluca, uma convicção defender-se-á da forma que pode, redobrando a sua intensidade e recusando qualquer tipo de cedência.

Todos sabemos também que não podemos estar sempre certos; todos reconhecemos a possibilidade (quanto muito teórica!) de virmos a estar errados. Esse reconhecimento, e a humildade que nos exige, recomenda uma coisa na forma como abordamos os outros que discordam de nós: moderação.

Não quero com moderação dizer para sermos mornos, nem que fiquemos em cima do muro. Não quero dizer que devemos colocar-nos no meio de cada problema, ou que não adotemos opiniões firmes, categóricas, baseadas em convicções profundas. Sejam de esquerda ou de direita, comunistas, liberais, conservadoras. Não uso “moderação” como sinónimo de “ser do centro” ou de procurar sempre um compromisso. Há temas nos quais o compromisso é inatingível.

Quando falo em moderação refiro-me a uma forma de abordar os antípodas. Tem começado a faltar, julgo, alguma capacidade de contermos as nossas certezas por uns momentos, de suspendermos a reação primária para percebermos de onde nos fala quem de nós discorda. Quem é aquela pessoa, o que a motiva, o que a preocupa, o que a determina. É o exercício da empatia, que é trabalhosa, que exige alguma vulnerabilidade, mas que nos coloca numa posição de humildade a partir da qual podemos convencer o outro, ou ser convencidos, dependendo de quem tem melhores argumentos, factos científicos e bons dados estatísticos.

“Ah, mas esta malta que vota no Chega”. Se vota no Chega, porque será? Concordará com tudo, ou só com parte? Saberá de tudo, ou só de parte? Que pontos de contacto temos? Estamos ambos preocupados com a corrupção? Estaremos a usar os mesmos factos? Os mesmos conceitos? O que queres dizer com “racismo” quando dizes “em Portugal não há racismo”? Já pensaste que racismo significa mais do que mero “preconceito racial”? Já olhaste para os inquéritos sobre o tema? Já passaste num bairro pobre? Achas que esse político diz “as verdades”? Já viste que mentiu aqui, quando disse que ia estar em exclusividade? E que está escrito, aqui no seu programa, que quer acabar com o SNS e a escola pública, mas que ele nunca diz isso em público?

“Ah, não há pachorra”. Ninguém disse que a democracia era fácil. A democracia, para não se tornar meramente numa ditadura da maioria, pressupõe uma disponibilidade intensiva, trabalhosa, para debater com o outro. Querer saltar esse passo é abdicar dela.

“Epá, mas há gente com quem já não vale a pena”. Não digo que não. Há para aí gente horrível. Duvido que me encontrem a perder tempo em exercícios prolongados de empatia com quem insulta, agride e ameaça pessoas por divergências de opinião. Eu não tenho essa grandeza de alma, apesar de haver muita gente que a tem. Já recebi comentários e mensagens cheias de insultos e ameaças – e mal posso esperar por esta nova leva. Não lhes dedico um centímetro de atenção. E digo mais: se tentarem perceber o outro lado, e daí receberem só ódio e incompreensão, não percam mais o vosso tempo. Mas tentem.

O mundo que discorda de nós não é só feito dessa gente que “não vale a pena”. Os eleitores do outro campo político não são todos um bando de casos perdidos, consumidos pelo mal, sem qualquer hipótese de redenção. A maioria serão pessoas preocupadas com a família, com os seus empregos, com os seus vizinhos; com medos e inseguranças comuns; com problemas financeiros ou de saúde; que se sentem abandonadas ou mal representadas. Muitas são filhas de gerações onde o racismo, a homofobia e o machismo estão tão enraizados que são como a água para os peixes: invisível, natural. Para as quais as novidades de um novo mundo não são imediatas ou fáceis. Algumas não tiveram as mesmas oportunidades de aprendizagem, não leram os mesmos autores iluminados, não fazem parte de grupos que estimulem o pensamento crítico, ou que discutam abertamente temas progressivos. Podem ter muitas coisas em comum connosco. Podem até, claro que sim, ter razão em muitas coisas, e nós estarmos errados noutras tantas.

De que serve vivermos cheio de certezas se não somos capazes de perder dez minutos a convencer alguém de que estamos certos? De que serve juntarmo-nos a um coro de indignados para fazer sentir a alguém que não é antirracista o suficiente, ou feminista o suficiente, ou woke o suficiente, ainda que saibamos que essa pessoa, no fim de contas, até pode partilhar os nossos valores e as nossas preocupações?

E tu, que insultas quem é diferente, tu do “eu não sou racista mas”, que te indignas com o politicamente correto mas rejeitas qualquer mudança que ameace a tua visão do mundo, se estás tão certo da tua verdade, da tua supremacia, porque é que só sabes discutir com violência, com ameaças? Isso é tudo medo de aprender alguma coisa?

Empatia e moderação. São quase decorrências lógicas, obrigações morais, do facto de não estarmos sempre certos, de não sabermos tudo e de não termos vivido o que os outros viveram, passado pelo que os outros passaram. É mais fácil ser absolutista e expulsar quem não está connosco. Eu faço-o com frequência, porque não sou menos preguiçoso que ninguém. Mas estamos num ponto da nossa história em que temos de mudar de curso, de tomar essa responsabilidade nas nossas mãos. Vale a pena esforçarmo-nos, porque dentro em breve vamos desejar ter conversado um bocadinho mais uns com os outros, ter perdido um bocadinho mais de tempo a falar com o nosso vizinho com opiniões estranhas, a nossa querida tia que começou a repetir lugares comuns extremistas, o tipo que até era porreiro na escola e agora é um idiota do Twitter, quando eles nos disseram algo que nos arrepiou a espinha pela primeira vez.

Há muita gente errada por aí, a começar por nós. Temos de nos oferecer ao debate, sobretudo porque estamos tão convencidos de que temos razão. Se não o fizermos nós, não fará mais ninguém. Com disponibilidade e abertura. Com tempo e espírito de missão. Com empatia e moderação. Não é fácil, mas é preciso.

João Marecos é advogado em Portugal e em Nova Iorque, onde estudou na NYU com uma bolsa Fulbright. É General Counsel em empresas na área da tecnologia e co-fundou a Ockham Legal. É consultor na Organização Mundial de Saúde. É autor de “A Carta ao Cavaleiro de Nada”, menção honrosa no Prémio Literário Branquinho da Fonseca e indicado no Plano Nacional de Leitura. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”.

O Observador associa-se ao Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial, para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa a opinião pessoal do autor, enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.