Neste momento, estou em casa, em Londres, no 45.º dia de um isolamento que começou por ser voluntário, mas já não é.

Vejo hoje mais pessoas na rua do que nas semanas anteriores, nos parques a fazer exercício ou a aproveitar um tempo estranhamente limpo e claro, em fila à porta dos supermercados, devidamente distanciadas.

Pelas redes, partilho o isolamento com os outros. Vi amigos pelo computador que já não via há anos em carne e osso. Foi preciso uma pandemia para nos lembrarmos uns dos outros.

Nos jornais, na rádio e na televisão, só existe um tema e seus derivados, que já acompanho pouco, cansado que estou. Os desenvolvimentos são comunicados ao minuto, um hábito terrível do jornalismo digital, que não deixa respirar, não deixa assentar ideias, substituindo num segundo a informação avançada no anterior.

A desinformação também grassa, muita dela bem-intencionada, na pressa de transmitir informação que se crê útil, verídica, outra mais insidiosa, a tentar aproveitar o medo e as dificuldades para semear o ódio.

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Vivemos num tempo suspenso: parou quase tudo, sustemos a respiração em conjunto, partilhamos um drama comum.

Mas, na verdade, este drama não é igual para todos. Antes da pandemia, já havia gente com vidas em suspenso.

Já havia gente nos corredores dos hospitais, aguardando por tratamentos importantes. Doentes no IPO à espera de visitas que não chegam. A minha querida avó, tantas queridas avós, num lar, sem saber porque é que a família deixou de aparecer. Ter-se-ão esquecido? É este o fim? Não é, avó, não é, estamos aí contigo, com o coração, com o pensamento, já que as pernas têm grilhetas e as portas já não abrem.

Gente na fila do centro do emprego, em salas de espera para entrevistas, a pensar que tinha de ser desta, porque o dinheiro já não chegava para a renda.

Havia gente à espera de cirurgias, de órgãos, de testes. Gente com bebés a caminho, a felicidade e esperança de repente transformadas em preocupação e incerteza. Gente com casamentos marcados e adiados sine die. Gente com dívidas para pagar e com fontes de rendimento agora congeladas.

Havia esta gente e continua a haver, ainda que tudo à nossa volta nos convença que o mundo nos suspendeu a todos por igual, e que dessa convicção de igualdade brote, paradoxalmente, o egoísmo humano de pensar primeiro em nós e depois nos outros, de achar que “eu também estou a sofrer”, e que esse sofrimento justifica tudo, desde o esforço inicial, tristemente ridículo, de arrebanhar o papel higiénico possível, para que falte aos outros antes de nos faltar a nós, até ao ódio e à violência com que julgamos os que fazem diferente.

Do outro lado deste sofrimento e do desespero que se viu multiplicado vive uma outra gente, desinformada, descuidada, ou simplesmente cansada. Saem pelas ruas de peito feito contra um vírus que dizem não temer. Fazem-no por serem novos e não estarem em risco. Ou por serem velhos e terem visto muito coisa. Fazem-no porque acham tudo um histerismo, ou fazem-no por já não acreditarem em nada. Fazem-no porque desistiram e fazem-no porque não desistiram.

Pensam primeiro neles: no que eles acham, no que eles sentem, no que eles arriscam. É um egoísmo, mas não é o egoísmo um traço eminentemente humano? Quem nunca foi egoísta? Quem nunca foi ignorante? Quem, confrontado com a perspetiva de uma quarentena sem fim à vista, não se apressou a sair de casa para garantir um ou outro produto, para ver uma ou outra pessoa, para terminar uma ou outra tarefa? Já sei, já sei: ninguém, nunca. “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”, já dizia o Campos. Vivemos todos com a moral na barriga.

É sempre em situações de desespero, de medo e de ansiedade, de pandemias, de guerras, que sobressaem as melhores e as piores qualidades do ser humano, muitas vezes ao mesmo tempo. A coragem e o medo. O desapego e a avareza. A empatia e a crueldade. A solidariedade e o egoísmo.

Gritamos muito contra os egoístas, mas mais vale falar-lhes somente, dizer-lhes que percebemos, mas que é hora de sermos todos egoístas em conjunto, adotando o comportamento que melhor protege cada um de nós: proteger os outros.

Na verdade, se cada pessoa fizer tudo o que pode para proteger os outros, encontrar-se-á já não dependente apenas dos seus esforços, mas beneficiária dos esforços de todos.

Haverá solução mais egoísta, mais condizente com o instinto básico da sobrevivência, do que lutar para que todos os outros nos protejam a nós? Esquecemo-nos, e não apenas hoje, de que somos tantas vezes “os outros”. Proteger os outros, defendê-los, é sempre protegermo-nos e defendermo-nos a nós, mesmo quando não imediatamente.

Entre aquela gente do sofrimento multiplicado e esta gente que enche as ruas e organiza festas em casa, estão médicas, enfermeiros, pessoal da limpeza, dos transportes, da energia e da água, caixas de supermercado, forças de segurança e sim, alguns políticos, exaustos, mal dormidos, a darem o que podem por uma crise que não escolheram protagonizar. Que pandemia a deles, tão diferente da minha.

Nos tempos que correm, acesso à internet, tempo livre e medo são ingredientes mais que suficientes para mostrarmos o pior de nós. Temos de respirar, ler, ponderar, esperar. A nossa opinião é importante, mas se não decide nada, guardemo-la para o futuro. Se podemos influenciar alguém, façamo-lo com factos e um sorriso. Guardemos as teorias para outros dias de Sol. Agora, é tempo de nos protegermos a nós, protegendo os outros.

Ficando em casa até nos mandarem sair, esperando que essa decisão tenha em conta não só as vítimas da pandemia, mas também as vítimas da crise que se avizinha, tão reais, tão humanas, tão vítimas, como estas que hoje perdemos.

Deixando a informação para a imprensa, as decisões aos políticos, a medicina aos médicos.

Tenhamos a humildade de perceber que apesar de vivermos uma pandemia em conjunto, cada um vive pandemias diferentes. Há umas bem piores que outras e não temos, verdadeiramente, como julgar a pandemia que vive o Outro.

Um dia, espero, este coronavírus será controlado, e a normalidade regressará lentamente à vida da maioria. Passará a ser uma memória de um confinamento, de uma provação, de um medo que, por se tornar longínquo, confundiremos apenas com incómodo. Uns falarão dos vizinhos a cantar em conjunto, das palmas à varanda. Outros lembrar-se-ão da falta de papel higiénico e da ignorância. Uns recordarão as horas por dormir, as lágrimas e o que se perdeu. Outros dirão que foi apenas um teste para as lutas que aí vêm.

Certo é que nos próximos anos, e nas próximas décadas, muitos continuarão a sofrer mais que outros, como sofrem sempre, como sofreram sempre, quase todos sem nos deixarem um princípio de lembrança.

Hoje, a olhar pela janela do meu isolamento, lembrei-me deles e do quanto precisam de ser lembrados.

E lembrei-me da minha avó, na esperança que ela o saiba.

João Marecos tem 28 anos, vive em Londres, é advogado em Portugal e em Nova Iorque, onde estudou com uma bolsa Fulbright, e co-fundador da Ockham Legal. Integrou os Global Shapers de Lisboa em 2014. Em 2019, publicou o livro “Carta ao Cavaleiro de Nada”, uma história para crianças sobre Fernando Pessoa que consta do Plano Nacional de Leitura. É um dos autores da página “Os Truques da Imprensa Portuguesa”, liderou a criação do projeto 100 Oportunidades e é consultor da Organização Mundial de Saúde num projeto sobre desinformação nessa área.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial. Semanalmente, membros desta comunidade partilham com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que não a vincule.