O actual conflito entre a Rússia e a Ucrânia não só destruiu a crença de uma paz duradoura em solo europeu, como também lançou o receio da utilização de armamento nuclear pelas potências que dele dispõe.
Se isto é uma preocupação para os países ocidentais, não é preocupação menor para os países do extremo oriente, onde a crescente tensão militar apenas foi ofuscada pela mediatização do conflito russo-ucraniano.
Com uma Coreia do Norte que desafia constantemente a segurança na região Indo-Pacifico com testes de misseis intercontinentais; com uma China que é já a maior potência militar naval e que verbaliza o seu anseio de tomar Taiwan; e com as recentes e provocatórias manobras de navios militares russos pelo estreito de Tsugaru, no seio do arquipélago japonês, as preocupações da eclosão de um conflito militar no Oriente crescem de dia para dia.
Por essa razão, os países da região do Indo-Pacífico ou que neles tem interesse estratégico, criaram nos últimos anos alianças militares ou fóruns de diálogo com vista à discussão e reforço da segurança naquela zona do globo, como é o caso da “AUKUS” (pacto de segurança trilateral celebrado entre a Austrália, Reino Unido e Estados Unidos da América) ou a “Quadrilateral Secutity Dialogue” (vulgarmente conhecida como “QUAD”, que estabelece uma aliança entre a India , o Japão, os Estados Unidos da América e Austrália).
Não há sombra de dúvida que a China está a aproveitar o actual conflito russo-ucraniano para estudar a reacção do Ocidente e da NATO a um conflito que por si venha a ser desencadeado no Pacífico.
Na eminência de um conflito armado nessa região, o Japão é, sem dúvida, um dos países que mais teme pela sua segurança.
O artigo 9º da constituição pacifista aprovada pelo Japão após a Segunda Guerra Mundial, impede o país não apenas de recorrer à guerra ou à ameaça do uso da força mas também de ter forças militares. O país dispõe apenas um pequeno contingente denominado “Forças de Autodefesa do Japão”, as quais, no entanto, não tem qualquer capacidade militar para deter um ataque nuclear como o que pode ser desenvolvido pela Coreia do Norte.
Nessa medida, o Japão tem vindo ao longo dos anos a “confiar” a sua segurança aos Estados Unidos da América, com quem mantém estreita aliança.
No passado, após o lançamento de mísseis balísticos pela Coreia do Norte, quer o Japão quer a Coreia do Sul pediram aos Estados Unidos da América a antecipação da instalação de um sistema de defesa antimíssil THAAD (Terminal High Altitude Area Defence), que serviria de “escudo nuclear” à ameaça Norte-Coreana.
Esse pedido foi na altura mal visto pela China, que o considerou uma ameaça à sua própria segurança e ao seu próprio sistema de misseis.
Com o exemplo de vulnerabilidade a um ataque nuclear que o actual conflito russo-ucraniano fez transparecer, as necessidades de defesa antiaérea adequada voltaram a subir no ranking das preocupações do Japão.
Por essa razão, o maior partido japonês – LDP – decidiu discutir no seu seio a possibilidade de instalar em território japonês mísseis nucleares americanos.
Esta discussão representa algo verdadeiramente fraturante no seio da sociedade japonesa, quanto é certo que o Japão foi até hoje o único país a sofrer os efeitos catastróficos de um ataque nuclear: os bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.
Existe no seio da sociedade japonesa um forte sentimento contra armamento nuclear.
Os efeitos das bombas nucleares não se fizeram apenas sentir pela imediata e hedionda destruição humana e material provocada pelos bombardeamentos de Hiroshima e Nagasaki.
Fizeram-se também sentir nos anos seguintes entre os sobreviventes dos bombardeamentos, pelos efeitos nefastos das radiações a eles associadas.
Os “hibakusha” (sobreviventes da bomba atómica), foram segregados nos anos seguintes aos bombardeamentos, confinados em bairros específicos, vítimas do preconceito e do receio de poderem contaminar outras pessoas, tendo encontrado dificuldades para desenvolverem uma vida normal, como para arranjar emprego ou até casar.
Esses “hibakusha” são, por isso, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os grandes porta-vozes do desarmamento nuclear.
Assim, se o tema da alteração do artigo 9º da constituição japonesa – que permita ao país ter um exército não apenas defensivo – é, só por si, já altamente controverso, encetar a discussão da possibilidade de os japoneses disporem de armamento nuclear no seu território constitui um verdadeiro terramoto político no Japão.
A questão não é sequer consensual dentro do próprio partido LDP. De facto, o seu actual líder – e actual primeiro-ministro – Fumio Kishida (cuja família é originária de Hiroshima) é uma das vozes contrárias à possibilidade de o Japão inverter a sua política tradicional de desarmamento. Mas a ala mais conservadora do partido – onde se situa o antigo primeiro-ministro Shinzo Abe -, quer discutir a possibilidade de alterar essa política, face aos recentes desenvolvimentos e preocupações da política e segurança internacionais.
A quebra deste “tabu” na vida política japonesa é mais um dos “efeitos colaterais” que o conflito russo-ucraniano parece estar a ter um pouco por todo Mundo.