Toda a gente sabe, de ciência certa, que Sócrates é um troca-tintas. Eu também, com a diferença de já disso estar inteirado ao tempo em que António Balbino Caldeira, um fascista desdenhado pelo establishment, conduzia uma solitária investigação ao curso domingueiro/engenheiral do homem e em que um fatinho de preço exorbitante comprado em Beverley Hills fazia as delícias dos militantes anti-socráticos, legião modesta na qual me incluía.
Na blogosfera então pujante denúncias não faltaram até ao fim, incluindo moscambilhas hoje esquecidas num mar delas, como não faltaram blogues arregimentados e pagos com dinheiros públicos para defender quem mandava – bons tempos. Nada que abalasse o cortejo triunfante do socialismo, que culminou em Abril de 2011 com o XVII Congresso do PS, onde ninguém teve dúvidas, ninguém desconfiou, ninguém viu? Nem os números um, dois e três, nem os próximos, nem os íntimos? Nem Costa, o delfim, nem Vitorino, o lúcido, nem Siva Pereira, o alter-ego? Nem os senadores Soares, Almeida Santos, Manuel Alegre?
Quando a bolha das finanças do país rebentou, rebentou também a impunidade socratiana, cabendo aventar, num exercício de história contra-factual, que Sócrates, se não tivesse perdido em 2011 as eleições, nunca teria sido indiciado.
Mas foi. E como já na altura eu tinha poucas ilusões sobre a competência do nosso Ministério Público recomendava (em Março de 2012) a criação de uma magistratura ad-hoc para tomografar o ex-PM, isto é, curto-circuitar a Procuradoria, e os sindicatos das magistraturas, e as polícias…
Sobre o juiz Alexandre, o herói caseiro de boa parte da minha gente, disse, pouco depois da prisão de Sócrates: É que um erro neste processo não tem as mesmas consequências que um erro noutro processo qualquer. Ambos podem ser corrigidos pelas instâncias de recurso; mas neste a parte ofendida podemos ser – e seremos, se houver erros – nós. Razões por que veementemente desejo que Alexandre saiba o que anda a fazer.
Não sabia. E por isso escrevi, em Setembro de 2016, … não sabia, nem sabe também o procurador Rosário, e ambos são, na minha opinião, e qualquer que seja a evolução do processo, manifestamente incompetentes.
Eram. Daí a decisão do juiz Ivo Rosa, que critica veladamente o trabalho de um e demole o do outro. E a procissão segue para a Relação, de onde regressará para prosseguir até um julgamento algures num dos próximos lustros, e continuar em recursos até que Sócrates, ou um juiz, ou eu, morra de Covid27.
Os comentadores comentarão, com as banalidades que em geral lhes assistem; alguns magistrados escreverão artigos crípticos com sugestões da undécima reforma que não lhes toque nem nos privilégios nem na inércia nem na tradição de ineficácia; alguns juristas quererão modernizar o sistema copiando soluções dalguma variedade asneirenta ou da americana, com perdão da redundância; os poderes do dia dirão coisas piedosas porque o PS de Costa, que é o mesmo de Sócrates, renega este último depois de o ter incensado; e ao Chega! saiu a lotaria porque vai cavalgar a onda da indignação apresentando, para assuntos complicados, ideias simples.
Que lições tirar?
- Ivo Rosa, ao contrário do seu antecessor, não é muito bem visto pela Relação, que tende a não coonestar os seus “excessos” garantísticos, nem pela opinião pública, que não aprecia ver poderosos escapar ao pelourinho, nem pela comunicação social, que tem outro rei no lugar do rei, nem pela direita, mesmo a que não é justicialista, porque vê um Némesis antigo a escapar-se, nem pelo ministério público porque está habituado a não dar contas, não apresentar resultados, nem apreciar que se lhe mostre a careca inoperante.
Assim é. Sucede que a existência de juízes que se estão nas tintas para os seus “superiores”, que ignoram a opinião pública e a publicada, não é a melhor garantia para a segurança na aplicação do Direito, que requer uniformidade, mas é para a aplicação da Justiça. Porque o garantismo hoje pode incomodar por estar ao serviço de um megalómano rapace que toda a gente gostaria de esquecer; mas amanhã pode proteger um pobre diabo que toda a gente ignora e que um polícia justiceiro, e um magistrado preguiçoso e indiferente, fazem passar as passas do Algarve. - Com tempo, sem pressa, alguma coisa haverá de ser feita para melhorar a administração da justiça. E como ela já anda a ser reformada há muito e não dá sinais de melhorar, conviria ligar menos importância ao que dizem juristas, magistrados e funcionários, porque todos têm interesses ocultos, e, como os porcos, têm o focinho dentro da gamela, o que os impede de ver o que está à volta; e trazer para o terreno gente que de Direito saiba nada, e da solução de problemas complicados alguma coisa.
- Isto quer dizer economistas, engenheiros, polícias, empresários, gente que, como parte ou arguido, já se tenha esfregado com o aparelho. Jornalistas não, que têm tido fartas oportunidades, e delas fazem mau uso; e estudiosos só cum grano salis, que têm tendência para copiar modelos, com a mania de que as mesmas plantas em solos diferentes dão os mesmos frutos;
- O que importa nesta altura é fazer perguntas aos agentes da justiça, e descartar as respostas pomposas, os argumentos de autoridade, a sobranceria que a impunidade do meio confere, e tretas sindicais e corporativas. Que perguntas?
- Exemplos: a) Se os magistrados do ministério público conduzem a acção penal, para que serve o juiz de instrução? Não é o procurador que investiga, e se é não deve ser, isso é trabalho de polícia; e não é o juiz de instrução que julga, isso é trabalho de juízes que não sejam de faz de conta. Donde, ou o procurador está a mais, ou está o juiz; b) Os procuradores ou são independentes ou não. Se forem, tem de haver mecanismos para os responsabilizar pela miséria das taxas de condenações; se não forem, de que forma é que se pode impedir que quem esteja no poder (cujos tentáculos são hoje mais numerosos do que alguma vez foram) fique ao abrigo de inquirições?; c) Por que motivo o trabalho dos juízes é avaliado unicamente por juízes? Estes últimos não se podem pronunciar, e bem, sobre o mérito das sentenças – isso fica para o recurso. Donde, o que podem medir é a produtividade. Ora, deve haver métodos para avaliar a complexidade dos processos e o trabalho que implicam, fazer alguma forma de comparação, e dela deduzir classificações. Pelos pares, unicamente pelos pares? Não parece; d) Quem quer que se dê ao trabalho de ler sentenças fica abismado com o palavreado. O rigor do Direito implica algum tecnicismo de linguagem, bom domínio da língua e capacidade e conhecimentos para raciocinar juridicamente. Mas isso não é a mesma coisa que longas digressões de má retórica para impressionar os advogados e os colegas, em caso de recurso, os primeiros porque, no caso de saberem escrever, não ficam particularmente admirados, e os segundos porque são farinha do mesmo saco, educados nas mesmas escolas e provindos do mesmo aquário. Que fazer para cortar na treta? É que ela custa tempo porque não é difícil imaginar daqui os juízes a coçarem longamente a cabeça para se fazerem interessantes.
São apenas exemplos. Mas por eles se vê a aragem: reforma que venha apenas de dentro, pairando acima das preocupações das pessoas, não serve.
E então, Sócrates, como ficamos? O que sobrou do himalaia das acusações, mais as que forem repescadas, deve dar, em caso de condenação, para uns bons anos, o que mostra o absurdo de uma acusação em regime de pesca de arrasto – menos e bom é melhor que muito e mau.
Até lá, pode ser que ensaie um regresso. Que não tem qualquer hipótese de sucesso – não cabem dois galos no mesmo poleiro, mesmo que oriundos da mesma ninhada, e as galinhas socialistas querem esquecer que aquela crista, hoje abatida, foi o desterro dos seus corações.
Donde, ganhador, para já, fica o bom do André Ventura, que vai andar por aí de dedo em riste, açulando as massas indignadas. Nas quais, é bom lembrar, estão muitos dos que levaram anos a fio Sócrates num andor, dando-lhe sucessivas vitórias até uma maioria absoluta.
Quanto à Justiça, pior do que está não fica. E pode ser que o perigo de ver o Chega! chegar excite a imaginação criadora do reformador.