Desde a minha última crónica, a corrida à Casa Branca continuou a decorrer ao ritmo acelerado que já aqui havia descrito. Nas últimas duas semanas, após a tentativa de assassinato de Donald Trump, Joe Biden retirou-se da corrida. Ficámos a conhecer as escolhas de ambos os partidos para a vice-presidência. Trump escolheu o senador do Ohio, JD Vance, e Harris acabou por escolher o governador do Minnesota, Tim Walz. Ambas as escolhas deram que falar.

Uma campanha presidencial norte-americana é intensa e pesada, até fisicamente. Os candidatos precisam de percorrer milhares de quilómetros de estrada e ar, durante meses, para fazer inúmeros comícios nos vários swing states, muitas vezes geograficamente distantes (Pensilvânia, Michigan, Wisconsin, Georgia, Arizona, Nevada – os seis estados em disputa nesta eleição e onde os dois candidatos estão empatados). A campanha acarreta também um escrutínio máximo a todas as declarações presentes e passadas dos candidatos. As primeiras semanas de JD Vance indicam que este não é particularmente carismático no terreno e nos comícios. Para além disso, Vance parece ter um sem-número de declarações passadas que, numa eleição nacional, são nocivas à campanha. Estas declarações têm vindo a ser desenterradas e tudo indica que continuarão a surgir outras do mesmo género. Trump, numa decisão que agora nos parece impulsiva, dois dias depois do seu atentado e antes de Biden desistir, escolheu um “nº2” particularmente extremista e profundamente embrenhado no mundo online de figuras e podcasters de extrema-direita, onde ideias ultra-pro-natalistas e de supremacia racial, religiosa e nacional são habituais. O problema, claro, é que o eleitorado do país real é diferente da população que frequenta essas comunidades online. Para um eleitor mediano – por exemplo, um eleitor moderado, de classe média, sem grandes simpatias partidárias, que não liga excessivamente a política mas que vai acompanhando o mínimo – chamar “childless cat ladies” a oponentes políticos, ou insultar todos aqueles que não têm filhos, causa aversão. E, nos Estados Unidos, uma eleição só se ganha conquistando os votos desses eleitores medianos e moderados.

De facto, olhando para os dados objectivos a que temos acesso, JD Vance é particularmente extremista dentro do partido republicano. Uma análise de todos os votos realizados no Congresso norte-americano, chegamos à conclusão de que JD Vance está à direita de 91% dos outros republicanos no Senado norte-americano. Ou seja, mesmo dentro do partido republicano, Vance corresponde a uma ala extremista. Parece evidente que Donald Trump faria uma escolha diferente, caso a decisão fosse tomada hoje. Muitos questionam se ainda é possível substituir Vance por um republicano mais moderado e convencional. Será difícil (até por razões legais), mas talvez não impossível.

Do outro lado, na corrida para vice-presidente de Harris os principais nomes que circularam foram os governadores da Pensilvânia e do Minnesota, Josh Shapiro e Tim Walz respectivamente, e o senador do Arizona, Mark Kelly. O governador do Kentucky, Andy Beshear, um político de centro-esquerda com valores progressistas mas cristão assumido é um fenómeno de popularidade raro num estado conservador, e também entrou inicialmente na corrida. No entanto, o seu nome pareceu perder gás nos últimos momentos da “mini-campanha” para vice-presidente, talvez pela sua idade ou pela ideia de que não valeria a pena trazer para a corrida um governador do Kentucky, visto que este estado está ganho pelo partido Republicano logo à partida.

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A popular governadora do Michigan, Gretchen Whitmer, e o secretário das infraestruturas e transportes, Pete Buttigieg, estiveram afastados da corrida quase à partida pela sua identidade demográfica (mulher e homossexual, respectivamente). Todos assumiram que a América, que nunca elegeu uma mulher presidente (e muito menos não-caucasiana), não estaria “preparada” para votar logo num duo de duas mulheres para presidente e vice-presidente, ou numa dupla constituída por uma mulher de cor e um homem homossexual. Nunca saberemos se essa suposição era realmente verdade e ninguém parece particularmente interessado em questionar a máxima de que a demografia e a identidade são destino na política norte-americana. Afinal de contas, as boas questões teóricas ou filosóficas não são necessariamente boa política e em política o que interessa é ganhar eleições. Assim, seja por um eleitorado conservador ou pela obsessão dos Democratas em manter uma gestão ultra-ponderada das incontáveis identidades descriptivas, a lista de candidatos restringiu-se apenas a homens brancos para “contrabalançar” a mulher de cor no topo da candidatura.

Da lista de finalistas que apontei em cima, Mark Kelly parecia ser uma aposta relativamente segura. A sua biografia interessante de “herói americano” é um trunfo eleitoral num país que gosta de boas histórias: de aviador na Marinha norte-americana na Guerra do Golfo (dos anos 90) a astronauta da NASA que concluiu quatro missões no espaço até ao Senado norte-americano, quando substituiu o histórico John McCain após a sua morte. É um moderado (mais moderado do que 91% dos seus colegas Democratas no Senado, mas mais liberal/progressista do que 55% do Senado como um todo) e parecia ser uma aposta segura. Apesar de não existir muita informação sobre o porquê de ter sido preterido, várias fontes indicam que não é as suas competências de orador deixam a desejar e que não teria o carisma para conquistar eleitores na campanha no terreno. Os finalistas acabaram por ser dois governadores: Josh Shapiro e Tim Walz.

Nos últimos dias, a narrativa rapidamente se construiu. Josh Shapiro, da Pensilvânia, seria a ala pró-Israel e mais centrista do partido democrata, e poderia facilmente trazer consigo os 19 votos eleitorais da Pensilvânia, tidos como essenciais para a vitória. Do outro lado, Tim Walz representaria a ala mais à esquerda do partido. Apesar de simplista, esta narrativa não corresponde necessariamente à realidade. Apesar de judeu, Shapiro critica frequentemente Netanyahu e as suas propostas políticas quanto ao conflito Israelo-Palestiniano são em tudo semelhantes às dos outros candidatos do partido Democrata, incluindo Walz (incluindo negociar um cessar-fogo e uma solução de dois estados). Como governador, Walz foi mais progressista do que Shapiro (embora o último apenas esteja no cargo há um ano), mas nos 12 anos em que foi membro da Câmara dos Representantes, Walz representou um pequeno distrito rural do Sul do Minnesota e era consistentemente um dos representantes mais moderados da ala Democrata (por exemplo, na sua última sessão legislativa, foi mais moderado do que 86% dos seus colegas Democratas). O grande calcanhar de Aquiles de Walz é mesmo a sua gestão dos protestos e desacatos que ocorreram em Minneapolis, em 2020, após a morte de George Floyd. A esquerda critica-o por ter chamado a Guarda Nacional (federal), enquanto a direita o critica por ter demorado três dias até chamar as forças federais, deixando os desacatos continuar nesse período. O próprio já admitiu que a reacção da cidade após a morte de Floyd foi um “falhanço”.  Teremos de esperar para ver se esse calcanhar de Aquiles será prejudicial a candidatura Democrata e qual a sua resposta.

Ainda assim, a escolha de Walz foi surpreendente. Muitos assumiram que a escolha mais óbvia seria Shapiro e a narrativa que mais ouvimos foi que Shapiro “garantiria” a vitória Democrata na Pensilvânia. Mais uma vez, esta narrativa simplista corresponde a uma realidade mais complexa do que parece. Em primeiro lugar, ganhar os 19 votos da Pensilvânia não é suficiente para ganhar a eleição: mesmo ganhando a Pensilvânia, os Democratas ainda precisam de pelo menos mais 25 votos provenientes dos outros cinco swing states. De que serviria Shapiro “ganhar” a Pensilvânia se prejudicasse a campanha nos outros estados? Em segundo lugar, a análise de eleições passadas demonstra que o efeito da escolha do vice-presidente em ganhar o seu próprio estado é quase nulo ou pelo menos altamente questionável. Afinal de contas, a escolha do vice-presidente não parece ser um efeito eleitoral directo em determinado estado, mas sim um efeito indirecto no perfil político global de cada candidatura, na história que cada campanha quer contar. Por exemplo, Biden foi escolhido por Obama em 2008 não para ganhar o seu estado (Delaware), mas sim para assegurar eleitores moderados de que havia alguém experiente e moderado para contrabalançar o novato Obama. Ronald Reagan escolheu George H.W. Bush (um burocrata de Washington D.C.) em 1980 por razões semelhantes.

Kamala Harris escolheu Walz porque quis contrabalançar o seu perfil progressista, proveniente da elite costeira e educada. Shapiro, que é forte na área costeira de Filadélfia e não nas zonas mais interiores e rurais da Pensilvânia (estas últimas é que fazem parte do afamado Midwest) tem um perfil social e político muito semelhante ao de Harris. Ambos foram Procuradores antes de ser políticos, ambos estudaram Direito, ambos representam o partido Democrata das costas Leste e Oeste. Ambos representam a chamada “esquerda Brahmin” que tem dominado a nova geração de partidos de centro-esquerda nas democracias avançadas nos últimos anos. Walz, sendo de uma pequena comunidade rural e verdadeiramente do Midwest, parece ser uma escolha feita para contrabalançar o perfil de Harris e para apelar a grupos demográficos e classes sociais diferentes. Veremos se resulta.

We’re not going back” é o slogan que está a sobressair e proliferar, de forma bastante orgânica, nas multidões que frequentam os comícios de Harris. A expressão pode ser traduzida como “não vamos voltar ao passado” ou “não vamos andar para trás”. Apesar do slogan não cumprir a velha máxima de não utilizar expressões formuladas na negativa em comunicação política, a verdade é que este slogan em particular tem sido bem mais poderoso a entusiasmar as multidões do que qualquer outro slogan utilizado nos eventos de Harris. O slogan funciona porque tem um duplo significado. De forma mais imediata e mais óbvia, sintetiza a vontade intensa de quem não quer voltar a ter uma nova presidência de Donald Trump. De forma mais abstrata, sugere que o futuro do país será diferente do passado imaginado pelos aderentes do “Make America Great Again”. Contrapõe o futuro ao passado, a inclusão à exclusão e, como tal, parece ser o slogan de resposta ao slogan que em 2016 mudou o mundo.