O que fazer diante da amplitude do desconhecido, de tudo quanto não sabemos, o que desconhecemos, sobre os outros, e sobre nós, a nossa história, o nosso passado, o que somos no presente, o futuro em branco? Como havemos de hospedar o desconhecido contido na nossa vida? Aquilo que em nós não cede e não é passível de ser violado, o lugar onde reside a chama, dentro de cada um. Como será esse lugar-aventura?

O que não conhecemos, enquanto decidimos a nossa vida e a levamos por diante, tudo quando ao escrever se eleva como um canhão de ondas, entre nós e quem somos, e nós adiante, a afogar-nos, porque quanto mais se escreve menos se entende, sobre nós, sobre a vida, sobre os outros — quanto mais se escreve, mais alta é a onda e maior a distância entre o sabido e aquilo com que contamos para seguir com a nossa vida.

Escrever desoculta. Mas impõe outro véu entre o que somos e o que julgamos que somos, entre nós e a imaginação ergue um lapso que dificilmente transpomos. Como entrar na vida de um estranho? Fazendo-nos convidados na sua casa, alugando o quartinho dos fundos e, uma vez lá dentro, passarmos a fazer parte desse organismo que é a casa do estranho que queremos parasitar, estranho dentro do qual somos agora o estranho hospedeiro?

Escrever oculta. Revela como o estrangeiro não são eles, mas sou eu. Caminho, escrevendo, e tudo quanto sei sobre mim se desfaz, à minha frente, como se parte sem querer a urna que guardava há anos as cinzas dos meus antepassados. Não sei quem sou, só sei isso. Escritas por extenso, revistas, corrigidas e impressas, as minhas pobres verdades são aquela cinza espalhada no chão e as minhas garatujas desenhos que faço com o dedo na cinza, desenho um olho, um arco que é uma boca, vejo uma cara. Mas nada disso quer dizer nada.

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O que se passa atrás das nossas paredes pode ter a forma de um segredo, mas antes ainda, no começo, é apenas o pressentimento metonímico de que ali há vida. Ouvimos os sussurros, parece-se com habitar uma casa nova e estranhar os barulhos da vizinhança, a que ainda não nos habituámos. Então, abre-se um hiato, entre o que se passa atrás das paredes e o que imaginamos que se passa, análogo ao bulício da cidade para alguém que nunca sai de casa, ou ao modo como julgamos os novos vizinhos sem os conhecermos, apenas porque são estrangeiros.

Esse hiato é uma primeira aparição da literatura, uma intromissão do literário, na vida mundana. Não é preciso ter uma veia literária para padecermos dessa aparição. Basta ter vizinhos do lado e estar atentos ao barulho que fazem no apartamento onde vivem. Imaginar o que se passa na casa ao lado da nossa, inventar deixas para conversas que não discernimos, imaginar a causa dos sons que nos chegam, a essa bisbilhotice desligada dos factos, que ganha vida própria nas nossas conversas de família e se instala como um folhetim na nossa parole doméstica — todos conhecemos essa intromissão por metonímia do literário na vida, que encena e mimetiza a própria origem da literatura como uma curiosidade pelo que se passa atrás das paredes.
É uma metonímia cruzada, uma confusão entre o que ouvimos e o que julgamos ouvir, entre o som de facto e a forma como preenchemos os espaços em branco. Metonímia que é como linhas de telefone cruzadas, em que nos parece ouvir uma palavra quando outra é que foi dita.

A imaginação só precisa que se erga entre nós e as coisas, entre nós e os outros, um biombo, não é preciso que tudo nos seja oculto. À falta de conhecermos o que se passa, imaginamos, é assim com as pessoas que vivem sozinhas e especulam sobre a vida das ruas de que se excluíram ou das quais foram excluídas. Assim é também quando sabemos pouco sobre as pessoas da nossa vida e confiamos as nossas sentenças à especulação, precisamente porque não sabemos. A literatura nasce no modo como o mundo à nossa volta não é inteiramente claro, nasce de um dos lados do biombo a especular sobre o outro lado, do nosso desconhecimento das coisas mais próximas, da necessidade que temos de preencher os espaços em branco.