Estamos em guerra. Existem palavras e expressões que necessitam de ser repetidas uma quantidade absurda de vezes até que sejam despojadas de qualquer significado para aquele que as profere e que, assim, não passem apenas disso, meras palavras como aquelas lidas ou ouvidas da boca de alguém, numa conversa alheia escutada, e que a nós nada nos dizem. Neste caso em específico, a minha tendência para a repetição derivava da necessidade de assimilação. Constituía uma necessidade férrea dar a conhecer a todas as pessoas com quem me cruzasse esta nova realidade para que a mesma passasse rapidamente a fazer parte do nosso dia-a-dia e deixasse de constituir novidade para quem quer que fosse, pois em cada expressão incrédula e admirada que contemplava, via-me presa num loop temporal onde era obrigada a reviver a desagradável notícia uma e outra vez mais.

Estamos em guerra. Enquanto ainda nos recompomos de um fenómeno singular e outrora impensável à maioria de muitos, vemos a nossa esperança abalada por um conflito bélico que, até à data e para muitos de nós, apenas tinha lugar em filmes, com movimentos previamente ensaiados, explosões meticulosamente calculadas, figurinos e pausas para retoques de maquilhagem. Até aqui a guerra desenrolava-se num ambiente limitado no qual a vociferação de um mero “corta” tinha o poder imenso de colocar um fim à cena.

Estamos em guerra. Aquelas guerras, sabem? Aquelas que estudámos na escola, quando éramos miúdos. Aquelas que nos pareciam uma realidade tão distante temporal e mentalmente, fruto de ideais tão diferentes dos nossos e tão pouco desenvolvidos. Isto segundo a tendência banal de crermos que a ideia de evolução se encontra diretamente relacionada com a ideia de progresso, pois se a estagnação nos aparece como algo desagradável e redutivo, o retrocesso, por sua vez, apresenta-se-nos como algo difícil de imaginar e impossível de acreditar ver concebido.

Estamos em guerra. Estamos em guerra, nós, que fomos obrigados a permanecer no interior das nossas casas quando o ambiente exterior deixou de ser um local livre de perigo, quando o ar que respiramos deixou de ser fiável e vimos no interior das nossas casas um porto seguro. Estamos em guerra, nós que deixámos que agora o perigo se apoderasse do interior dos lares ucranianos, deixámos que uma atmosfera tenebrosa impregnasse cada canto das suas divisões e empurrando os seus cidadãos para bunkers ou abrigos (chamem-lhes o que quiserem) de onde nos chegam constantemente relatos:

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“Estão a acontecer coisas terríveis no exterior, as famílias são desfeitas, homens, mulheres e crianças são separados uns dos outros. Temos tanta sorte aqui, longe do tumulto. Ir para um esconderijo tornou-se tão rotineiro como proverbiais chinelos e cachimbo que costumavam aguardar o homem em casa após um longo dia de trabalho. Acho que nunca me sentirei realmente em casa aqui. É como estar de férias numa estranha pensão. Como não temos banheira, lavarmo-nos num grande alguidar da roupa. Atividades de tempos livres: não são permitidas nenhumas no exterior da casa, até aviso em contrário. Ontem à noite as armas troaram até de manhã. Ainda não ultrapassei o meu medo de aviões e tiros. Para mim, o tormento parece durar horas. Esta noite as armas têm feito tanto barulho que já reuni os meus pertences quatro vezes, mas a Mamã perguntou, com muita razão: – Para onde irias? Tenho tomado valeriana todos os dias para combater a ansiedade e a depressão, mas isso não me impede de estar mais infeliz a cada dia que passa. A atmosfera está opressiva, sonolenta e pesada como chumbo. Eu podia passar o dia inteiro a chorar. A única coisa que podemos fazer é rezar a Deus e espero estar a rezar o suficiente! Esquecemo-nos de como rir – quero dizer, rir tanto até não conseguir parar, pura e simplesmente não consigo imaginar que o mundo alguma vez voltará a ser normal para nós. Anseio por andar de bicicleta, olhar para o mundo, sentir-me jovem e saber que sou livre”.

Estamos em guerra, nós, vós, que julgaram que o excerto acima se tratava de um testemunho de um cidadão ucraniano quando, na verdade, consiste numa compilação de segmentos de “O Diário de Anne Frank”, datado de há oitenta anos atrás.

Estamos em guerra, nós, que agora não podemos deixar de duvidar se a humanidade caminhará realmente para a sua melhor versão quando o relato do sofrimento de uma adolescente alemã e judia, vítima do Holocausto, se enquandra na perfeição com o sofrimento vivido atualmente pelo povo ucraniano.