Assisti à conferência de imprensa da Ministra da Saúde anunciando o seu Plano de Emergência, com a muito residual réstia de esperança com que antecipo anúncios públicos sobre saúde mental. As minhas (nenhumas) expectativas não foram goradas: um eixo com nove medidas, do qual emerge falta de noção e resposta à urgência da crise de saúde mental que vivemos.

Talvez tivesse uma pontada de ingenuidade e esperasse respostas estruturadas, em vez dos habituais retalhos para remendar a manta totalmente esburacada. Afinal ainda há dias o governo lançava o (herdado) Programa para a Promoção da Saúde Mental no Ensino Superior e fazia promessas muito interessantes como alargar as consultas de psicológica, reabilitação e nutrição nos centros de saúde.

Mas se as doenças mentais são de total democracia e não desdenham qualquer potencial doente, também a minha crítica é partidariamente democrática e não desdenha responsáveis: a resposta pública nacional ao estado da nossa saúde mental é miserável, há várias décadas e nas cores partidárias de todos os sucessivos governos. A culpa é crónica, a omissão é aguda e a falta de pensamento crítico sobre o SNS Mental parece delírio político.

Ao problema crónico e transversal do SNS, a falta de dinheiro e de racionalidade, na saúde mental juntam-se outros dois: um diagnóstico paupérrimo (ou omitido) do real estado a que chegámos, e o despertar tardio da opinião pública para o problema – impregnada em estigma e preconceito, que alimentam a iliteracia, a procura de ajuda e a exigência cidadã de soluções. É urgente “votarmos com a mente”, escolhendo eleitoralmente (também) de acordo com as propostas partidárias para a saúde mental.

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Mas vamos ao diagnóstico – um que use melhor rigor estatístico do que este Plano SOS. Em Portugal a prevalência de “perturbações psiquiátricas” é bem maior do que 22,9% por ano, e são muitas as fontes credíveis para fazermos as contas:

  • Muito conservadoramente, mais de três milhões de portugueses têm doenças mentais, 17% com ansiedade, 8% com depressão (de acordo com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental);
  • Em 2023, 34,3% da população portuguesa com mais de 16 anos tinha sintomas de ansiedade (INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, 2024);
  • Portugal é o país da União Europeia com maior risco de burnout ocupacional (OCDE) e dois em cada cinco trabalhadores têm um problema de saúde mental (de acordo com a Ordem dos Psicólogos Portugueses).

A OMS aponta, desde 2015, que 50% das doenças mentais se instalam até aos 14 anos, 25% até aos 24 anos, e portanto só 25% se instalam em idade adulta. Ou seja, se a emergência é promover e prevenir e cuidar, talvez fosse de segmentar bem o problema:

  1. Prevenção real e eficaz de doença mental é na infância e adolescência – qual é a oferta de pedopsiquiatras e pedopsicólogos, de programas específicos e ferramentas de gestão emocional?
  2. Pensar em saúde mental em Portugal ignorando a sua dimensão laboral, é imitar um cachorro que tenta esbaforido e inconsequente apanhar a própria cauda;
  3. Mais de 75% das doenças mentais dos portugueses são as “comuns”, sobretudo ansiedade e depressão, casos “de ambulatório”; seguem-se as adições e transtornos alimentares, de internamento específico/temporário. As doenças mentais graves que podem requer internamento são a esquizofrenia e doença bipolar – ora, não as desvalorizando de modo algum, serão estas as verdadeiros emergências a que o Plano deve responder?

Das nove medidas do Plano, quatro dirigem-se a populações-alvo institucionalizadas, doentes crónicos ou complexos, uma dirige-se a um grupo de risco específico, as forças de segurança; duas são gestionárias e só duas, que tropeçam mutuamente, se destinam aos doentes mentais comuns – a gigantesca maioria que quase não tem resposta pública.

Já agora, porque combater o estigma é uma emergência real, urgente, prioritária e estrutural, não estamos a falar de “perturbações psiquiátricas”, não estamos a falar de “saúde psiquiátrica”, estamos a falar de doenças mentais, que não precisam só ou sobretudo de psiquiatria para remitirem e voltarmos à saúde mental. Prova disso é o reconhecimento ministerial da necessidade de mais psicólogos.

Vamos falar da contratação urgente de cem psicólogos para os cuidados primários? O ponto de partida é trágico: existem atualmente 299 psicólogos nos cuidados de saúde primários; temos 570 Unidades de Saúde Familiar (USF) no país. Ora, 299+100=399, o que dá a metafísica quantidade de 0,7 psicólogos em cada USF. O reforço é plurianual. E é para continuar? E qual é o atual (e eterno) tempo de espera para uma consulta de psicologia? Silêncio político, quando a matemática é gritante.

Urgente e emergente serão, de facto, os programas de intervenção na ansiedade e na depressão nos Cuidados de Saúde Primários – mas quem é que garante a intervenção? Os 299 ou 399 psicólogos? Os médicos de família que não existem para parte considerável dos portugueses, e sem formação específica em saúde mental mas um contributo tão expressivo para a taxa de prescrição de antidepressivos, ansiolíticos e antipsicóticos que nos leva ao pódio europeu? Intervenção preventiva, reativa e/ou reintegrativa?

Se as nove medidas deste Plano de Emergência são “más”? Não. Só que não respondem com emergência às verdadeiras urgências e prioridades. Chegam para alguma coisa? Muito pouco. E assim continuaremos até explicarmos aos políticos que não vale a pena doirarem pilulas “mágicas”, e que placebos não dão votos.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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