A pandemia do Covid-19 pode não ter mudado o mundo. Pelo menos por enquanto. Mas trouxe para a luz do dia um conjunto de tendências que já se vinham a fazer sentir, mas a que podíamos prestar pouca atenção, porque não tinham, aparentemente, caráter de urgência. Há várias importantes. Mas nenhuma é tão visível como o papel da China no sistema internacional. Por três ordens de razões.

A primeira é a natureza do regime interno chinês. Já sabíamos que era autoritário e que a fantasia de que se tornaria uma democracia mais ou menos liberal quando a classe média se alargasse já estava enterrada. Sabíamos também que dispunha de tecnologia altamente sofisticada para monitorizar os seus cidadãos. Reconhecimento facial em câmaras espalhadas por todo o lado, acesso livre do regime aos telemóveis e às contas bancárias e expedientes semelhantes eram usados para instaurar um sistema social de pontos, que premeia ou pune comportamentos sociais. Também conhecíamos a sua relação com a história: Tiananmen nunca existiu e o regime está determinado a apagar qualquer vestígio que o ligue a um passado que não cubra a China de glória. Mais recentemente ficámos ainda a saber que existem “campos de reeducação” para muçulmanos e que a xenofobia apoiada pelo regime contra cidadãos ou imigrantes de origem africana é a regra e não a exceção. Direitos humanos é um conceito desconhecido da cultura chinesa e estados fora da China estão cada vez mais dispostos a aceitar pôr o assunto na gaveta. E dizê-lo publicamente.

A segunda é a forma silenciosa como a China se expandiu nas últimas duas décadas. Esta expansão decorreu sob o comando ou orientação atentos do partido do regime – Partido Comunista Chinês – que se mantém bem presente, seja nos setores estratégicos que domina diretamente, seja nas grandes empresas “privadas” que estão sob a sua influência. No Ocidente, Adam Smith advogou pela “mão invisível”, enquanto o Partido Comunista Chinês impõe “mão pesada” nas empresas “privadas”. A “mão pesada” chinesa materializa-se nos comités partidários internalizados nas empresas, entre os funcionários, ou entre os próprios proprietários. Por outras palavras, a natureza do regime não permite verdadeiras empresas privadas, como as concebemos no Ocidente, ainda que seja este o nome que usa para comprar ativos comerciais nas telecomunicações, na energia, na banca, nos seguros, nos portos, nos aeroportos de outros estados.

A expansão organizada da China a nível internacional começou paulatinamente por reconstruir e emprestar dinheiro em África, viabilizar a venda em massa das matérias-primas da América do Sul e, depois da crise de 2008, empenhou-se nos estados com as economias mais fragilizadas da Europa. Aliás, convém dizer que 2008 foi o ano do ponto de viragem: representa o momento em que o investimento chinês entra em força no capital de empresas europeias e em setores estratégicos. A China detém setores vitais para a soberania desses estados – Portugal e Grécia são bons exemplos – e não parece estar disposta a abrandar o ritmo. Mas será que o investimento chinês, em tais setores estratégicos, é gerador de valor acrescentado nas economias? Há semanas a Alemanha bloqueou a venda de uma empresa detida por capitais nacionais a uma empresa chinesa. Mas nada garante que outros países façam o mesmo. Mais a mais, a grave crise económica que a Europa terá de gerir, em virtude do fecho temporário das economias, representa uma oportunidade, tal como em 2008, para a China. E a que preço ou custo?

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Da União Europeia, chegou um sinal importante por parte da Vice-Presidente da Comissão com a pasta da concorrência, Margrethe Vestager, a respaldar os Governos na possibilidade de atuarem como operadores de mercado (comprando ações de empresas) por forma a garantir a segurança europeia, contra investidas da China em empresas estratégicas. Mas a notícia passou quase despercebida.

Finalmente, a pandemia mostrou duas particularidades do regime. A primeira é que Pequim não hesitou em tomar a liderança internacional face à crise do COVID-19. Desdobrou-se em esforços para que a sua presença se tornasse imprescindível, especialmente para os estados mais necessitados. Fê-lo de forma ainda muito amadora (material médico com defeitos, tentativa de mostrar a sua generosidade, ainda que muitos estados tenham pago pela ajuda), o que prova que ainda não está preparada para assumir um papel tão relevante quanto gostaria. No entanto, é importante reconhecer que a tentativa de ocupação deste espaço por parte da China ocorreu porque este se encontrava vazio – como aliás é apanágio do regime. Por um lado, os Estados Unidos estiveram ausentes da gestão deste processo na cena internacional, por outro, a União Europeia revelou alguma desorientação no início da pandemia. Também não é possível ignorar a dependência de vários blocos geográficos face a Pequim no que diz respeito a material e equipamento médico. Ainda que tenha havido uma adaptação das linhas de produção na Europa, esta mantém-se aquém da capacidade produtiva da China. Estes fatores contribuem direta e indiretamente para a consolidação da China como um player fundamental na ordem global.

A segunda particularidade é que o regime não tem contemplações. Como todos os regimes autoritários, para tentar salvar a face, mentiu sobre a pandemia, escondeu, hostilizou quem a quis tornar pública para salvar vidas, manipulou a Organização Mundial de Saúde (OMS) e só admitiu o que se passava quando o vírus já se tinha alastrado a outras zonas do globo, nomeadamente Milão, para onde tinham voado muitos chineses infetados. Pequim demorou semanas a comunicar à OMS a gravidade do contágio, período durante o qual tentou controlar a epidemia e que teria sido útil para a preparação da resposta no resto do mundo. Em causa está a relação de confiança e a obrigação de reciprocidade que os estados têm uns para com os outros.

Os Estados Unidos reagiram veementemente. Não só o presidente Donald Trump, mas a opinião pública americana parecem avessos a perdoar este deslize chinês. Já andavam as duas potências de candeias às avessas, mas a expansão da pandemia por falta de aviso parece ter sido a gota de água que fez o copo transbordar. A maioria dos americanos apoia o seu governo naquela que sabe que vai ser uma batalha longa para a China não chegar ao estatuto de grande potência. E a Europa? À procura do seu lugar na geopolítica e a braços com problemas de coesão, tem tido uma resposta muito mais ambígua.

A União Europeia é um ator sui generis – único e diferente de todos os outros – é um sistema político em constante construção. Esta particularidade, em muito acentuada pelos processos de alargamento, torna a identidade da União “volátil e elástica”. Se por um lado isso a diferencia de qualquer outra organização internacional – ou, numa perspetiva de mera comparação, de qualquer Estado -, por outro lado traduz-se em frequentes tensões e desafios internos. Por isso, características inerentes aos equilíbrios necessários no processo de construção do projeto europeu não têm facilitado a afirmação da UE enquanto potência global.

O estatocentrismo, aliás bastante latente no período em que nos encontramos, e as dificuldades de afirmação efetiva da UE a uma só voz em várias áreas permitem questionar a legitimidade e capacidade da UE enquanto ator global. Perante um contexto em que os EUA têm vindo a recuar no exercício do seu papel de potência ordenadora, consentindo um sistema internacional multilateral, a incapacidade da Europa em afirmar-se noutras dimensões, facilitará um reordenamento geopolítico favorável à China.

O período pós-Covid-19 será uma fase de transição e recuperação num mundo que se espera mais cauteloso na globalização e mais disponível para uma “regionalização”. Esta fase incluirá escolhas políticas nacionais, fortemente marcadas pelo desafio geopolítico que esta pandemia pôs a nu. Na UE, na resposta à crise económica, tudo indica que os estados-membros terão de aumentar os seus orçamentos nos sistemas de saúde e em áreas sociais. Outras áreas fundamentais para a afirmação da EU como ator global, tais como a educação, a investigação científica ou a defesa, podem acabar por ser negligenciadas. As repercussões destas escolhas políticas, sobretudo na capacidade de competir em tecnologia e em compromissos assumidos, por exemplo, com os países da NATO poderá estar em risco.

Num mundo em que dois terços do investimento global em Inteligência Artificial provém da China, a Europa não pode continuar indiferente. Desde 2000 que a UE tem vindo sistematicamente a falhar o objetivo de investir 3% do PIB em I&D, cavando um fosso maior para com os seus concorrentes tecnológicos. Só uma estratégia de forte aposta na reindustrialização assente em I&D no espaço europeu, que priorize a economia verde e sustentável, na proteção dos setores estratégicos e das empresas europeias, e na consolidação de uma política de segurança e defesa, permitirá à Europa abandonar a ambiguidade que lhe tem sido característica e afirmar-se enquanto potência global e comercial.

Mais: do ponto de vista geopolítico, a Europa terá que tomar decisões. Nada contra o facto de a China ser um parceiro comercial e uma potência com a qual se mantém relações pacíficas. Mas os ativos soberanos na Europa têm que continuar a ser exatamente isso: ativos soberanos. E a questão da liderança internacional, pelo menos por enquanto, precisa de consentimento. Este vai ser o próximo (longo) debate na Europa. Esta pandemia demonstrou o que pode ser um mundo sob a batuta da China. Não é o que devíamos desejar: vai contra os nossos princípios e tem tudo para criar dependências. Que a Europa saiba decidir de acordo com os seus valores e interesses.